Flávio Amaral Garcia: O negócio jurídico processual administrativo – PGE-RJ

O Anteprojeto de Lei Ordinária para a reforma da Lei n° 9.784/99 (Lei de Processo Administrativo) contém, entre outras inovações relevantes, uma proposta que se encontra integralmente alinhada com o Direito Administrativo Contemporâneo: a introdução do negócio jurídico processual administrativo.
O artigo 25-A do Anteprojeto estabelece o seguinte:
“Art. 25-A. Os órgãos e entidades podem, em consenso com o administrado, celebrar negócio jurídico processual administrativo que estipule mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da situação concreta, antes ou durante o processo.
§ 1° O negócio jurídico processual administrativo deverá ser celebrado após a manifestação do órgão jurídico, observados os princípios previstos no artigo 2° desta Lei.
§ 2° As partes podem, consensualmente, fixar calendário para a prática dos atos processuais, quando for o caso.
§ 3° O calendário vincula as partes, e os prazos nele previstos somente serão modificados em casos excepcionais, devidamente justificados.
§ 4° Dispensa-se a intimação das partes para a prática de ato processual, cujas datas tiverem sido designadas no calendário.”

O objetivo do novo instituto é conferir flexibilidade procedimental nos processos administrativos, permitindo que as partes promovam consensualmente os ajustes criadores de uma espécie de customização procedimental adequada às necessidades do caso concreto.
A norma — inspirada no exitoso artigo 190 do Código de Processo Civil — apresenta importantes virtudes, tais como: (i) o reconhecimento de que nem sempre o procedimento previsto em lei é o que melhor atende às especificidades de uma determinada situação concreta; (ii) a confiança do legislador de que a Administração Pública, enquanto parte no processo administrativo, também é capaz de negociar mudanças no procedimento que melhor atendam o interesse público; (iii) a percepção de que, sendo as questões cada vez mais complexas e sofisticadas, impõe-se atribuir maior flexibilidade e autonomia decisória para os gestores públicos, com vistas a otimizar a eficiência e a celeridade; (iv) a expansão do consenso também para as negociações endoprocedimentais.
O negócio jurídico processual administrativo é norma transversal e que pode se aplicar aos mais variados procedimentos administrativos, englobando a atividade administrativa de todos os entes federados, dado que o artigo 1° do Anteprojeto instituiu normas gerais de processo administrativo e de procedimentos em matéria processual administrativa, sendo aplicável à Administração Pública Direta e Indireta da União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Pense-se, entre outros, na possibilidade de negociação procedimental em matéria ambiental, urbanística, contratual e sancionadora.
A celebração de negócio jurídico processual administrativo dependerá, fundamentalmente, de uma motivação casuística a justificar a alteração do procedimento para melhor atender aos interesses da parte em uma determinada situação concreta. Em outras palavras, devem ser explicitadas as razões pelas quais o procedimento previsto em abstrato na norma deve ser modificado, sempre na perspectiva de maximizar a eficiência para ambas as partes e, ainda, atender às singularidades da situação concreta, conforme prevê o artigo 25-A.
Sob o ângulo temporal, o negócio jurídico processual administrativo poderá ser celebrado antes do início do procedimento ou mesmo com o procedimento em andamento, em especial quando detectadas causas supervenientes que revelem a necessidade de adequação e ajustes que resultarão na melhor concretização dos interesses de ambas as partes.
Procurou-se, também, submeter o negócio jurídico processual administrativo ao controle interno de legalidade, com a determinação de prévia manifestação do órgão jurídico, que deverá, por evidência, ser deferente ao cumprimento dos princípios previstos no artigo 2° da Lei n° 9.784, de 29.01.1999 (legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência). Uma preocupação relevante será o atendimento do princípio da isonomia, permitindo que administrados na mesma situação jurídica também façam jus ao direito de negociar procedimentos capazes de tornar a resolução do processo administrativo mais eficiente e célere.
As partes poderão, também, fixar calendários para a prática dos atos processuais, a partir do consenso acerca dos prazos e ritos. Os exitosos exemplos de flexibilidade procedimental nas arbitragens demonstram o acerto na introdução do novo instituto para os processos administrativos.
Oportuno lembrar que o negócio jurídico processual administrativo não é a sede adequada para a busca de consensos sobre o direito material, limitando-se aos aspectos procedimentais de cada relação processual administrativa.
Em certa medida, o negócio jurídico processual administrativo não deixa de ser uma experimentação procedimental que poderá, ao fim e ao cabo, permitir uma visão mais crítica acerca do próprio procedimento previsto em lei, podendo resultar, inclusive, em propostas de alterações legislativas com o intuito de aprimorar as normas em vigor.
Enfim, a proposta contida no anteprojeto (do qual tive a honra de participar da comissão que o elaborou, em conjunto com um time de excepcionais professores, a quem, desde já agradeço pelo convívio e aprendizado) — se convertida em lei — produzirá importantes avanços na gestão pública brasileira, com o reconhecimento pragmático de que gestores e agentes públicos negociam diuturnamente em todos os campos da atividade administrativa e que negociar faz parte da concretização do interesse público.
Tal previsão consta expressa no anteprojeto, mais especificamente com a proposta de acréscimo do inciso XIV do parágrafo único do artigo 2°, quando estabelece que um dos critérios que orientam os processos administrativos é “a possibilidade de negociação com o administrado na busca do atendimento do interesse público.” Que seja o início de uma nova era…
*Flávio Amaral Garcia é doutor em Direito pela Universidade de Coimbra, professor de Direito Administrativo da FGV Direito, procurador do Estado do Rio de Janeiro e sócio do Escritório Tauil & Chequer Advogados.
Artigo publicado no blog Fumus Bonis Iuris, no site de O Globo, em 8/11/2022
 

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