ConJur – Silva e Matsumoto: Remuneração por criptomoedas – Consultor Jurídico

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Em uma realidade totalmente globalizada e com tendências cada vez mais digitais, o mundo cibernético faz parte da vida da maioria esmagadora da população, gerando oportunidades e, muitas vezes, necessidades de adaptações constantes à nova realidade em que vivemos. A era digital abarca todas as etapas das vidas das pessoas — desde a infância até a velhice.
Considerada por muitos como a quarta revolução industrial, surgem cada vez mais tendências de mercado, modelos de business, inteligências artificiais e, com isso, a necessidade  acelerada de atualização e adaptação ao "novo normal", que trouxe novas definições como as criptomoedas — nome genérico para moedas digitais descentralizadas, criadas em uma rede blockchain a partir de sistemas avançados de criptografia que protegem as transações, suas informações e os dados de quem transaciona.
De pronto, observa-se que algumas características que contribuem para a ideia da utilização como meio de remuneração, tendo em vista se tratar de moeda global, facilitando o  pagamento de empregados atuando em países diferentes da sede dos empregadores — como nos casos dos expatriados —, segurança nas transações, ausência de impacto da inflação (neste último, em que pese a inflação não abale os valores das criptomoedas, a economia global possui grande influência, o que pode aumentar ou diminuir o valor de mercado).
Engana-se quem pensa que a utilização de criptos como meio de contraprestação aos trabalhos prestados é uma possibilidade longínqua, na economia global e nas relações jurídicas de trabalho; essa possibilidade é mais do que factível, é usual. Nos Estado Unidos da América, alguns atletas da liga profissional de futebol americano (NFL) recebem parte da remuneração por meio de Bitcoins, como é o caso de Russel Okung, e até mesmo o salário integral, por exemplo o atleta Sean Culkin, tornando-se o jogador pioneiro a receber toda sua remuneração nesse modelo.
No Japão, a regulamentação oficial considerando o Bitcoin como método de pagamento  ocorreu em 2017, a fim de controlar um ativo descentralizado e que independe de decisões do governo, bem como dos sistemas financeiros. Com isso, inúmeros estabelecimentos passaram a aceitar as moedas digitais e, consequentemente, otimizaram suas transações financeiras.
A Nova Zelândia também está entre os países que regulamentou a utilização das moedas  digitais como meio de pagamento de salários, contudo, restringiu as criptomoedas aceitas, permitindo a adoção somente para aquelas que possuem condições de serem trocadas por moeda fiduciária.
O modelo de regulamentação criado também abarca condições de tributações específicas, sendo os impostos recolhidos pelo empregador e repassados ao Fisco.
Obviamente que a criação de um modelo de remuneração utilizando criptoativos, mesmo que somente em uma parcela do importe total remuneratório, apresenta riscos e, de certa forma, chances de prejuízos aos beneficiários. Esse ativo apresenta grande volatilidade no valor de mercado, respondendo diretamente ao cenário da economia global.
Criando um cenário hipotético onde as criptomoedas já estão inseridas na relação empregado e empregador, e utilizando a título de exemplos eventos globais recentes, como a pandemia causada pelo novo coronavírus (Covid-19) e a guerra na Ucrânia, certamente pagamentos realizados por meio de moedas digitais e ainda não convertidos ou utilizados em outras transações até o momento dos acontecimentos, teriam perdido consideravelmente o valor inicial (do momento do pagamento), cabendo ao detentor do ativo a gestão de risco e tomada de decisão sobre o melhor momento para realizar transações envolvendo a criptomoeda.
No Brasil, o interesse da população por investimentos através de criptomoedas aaumenta cada ano, mesmo com a característica de "volatilidade" pairando sobre esse ativo. Um estudo realizado pela Sherlock Communications, que foi conteúdo de matéria na Forbes Tech, indica que um "boom" de criptomoedas está para acontecer na América Latina, sendo o Brasil o país com as maiores taxas de adoção.
Todavia, em que pese o constante crescimento do interesse da população por esses tipos de ativos, os embaraços para introdução das criptomoedas como tipo de remuneração são diversos, começando pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que conceitua como o pagamento de salário deve ser realizado.
Nesse diapasão, a inteligência do artigo 463 da CLT nos ensina que o salário deverá ser pago em moeda corrente nacional, sob pena de não ser considerado pago o importe devido, senão vejamos:
Art. 463 – A prestação, em espécie, do salário será paga em moeda corrente do país.
Parágrado único — O pagamento do salário realizado com inobservância deste artigo considera-se como não feito.

Ou seja, quando a legislação menciona "moeda corrente do país" automaticamente estamos falando do real, então o empregador que realizar o pagamento do salário dos seus empregados em qualquer outra moeda que não seja o real, correria grande risco de ser considerado como "não feito", resultando, consequentemente, na obrigação de realizar o pagamento novamente. Todavia, no presente artigo estamos falando de Remuneração, e não de  Salário, então é necessário, para seguirmos, apresentar as diferenças.
Homero Batista define salário como "o pagamento feito pelo empregador ao empregado, de maneira habitual, como forma de contraprestação (a) pelos serviços prestados, (b) pelo tempo à disposição do empregador e (c) pelos períodos de interrupção do contrato de trabalho".
Já o artigo 457 da CLT apresenta a remuneração como o importe total recebido pelo empregado, ou seja, além do salário, as gorjetas, gratificações, comissões entre outros valores:
Art. 457 — Compreendem-se na remuneração do empregado, para todos os efeitos legais, além do salário devido e pago diretamente pelo empregador, como contraprestação do serviço, as gorjetas que receber.
§1º Integram o salário a importância fixa estipulada, as gratificações legais e as comissões pagas pelo empregador.
§2º As importâncias, ainda que habituais, pagas a título de ajuda de custo, auxílio-alimentação, vedado seu pagamento em dinheiro, diárias para viagem, prêmios e abonos não integram a remuneração do empregado, não se incorporam ao contrato de trabalho e não constituem base de incidência de qualquer encargo trabalhista e previdenciário.
§3º Considera-se gorjeta não só a importância espontaneamente dada pelo cliente ao empregado, como também o valor cobrado pela empresa, como serviço ou adicional, a qualquer título, e destinado à distribuição aos empregados.
§4º Consideram-se prêmios as liberalidades concedidas pelo empregador em forma de bens, serviços ou valor em dinheiro a empregado ou a grupo de empregados, em razão de desempenho superior ao ordinariamente esperado no exercício de suas atividades.

Assim, resta claro que o objetivo é deliberar sobre a possibilidade da implementação das criptomoedas como meio de remuneração, e não (mas sem excluir também) como pagamento de salário.
Na esfera judicial, a discussão sobre a natureza jurídica das criptomoedas ainda segue por caminhos incertos, até mesmo pelas "poucas provocações" relacionadas às lides envolvendo esses ativos. Em decisão proferida em 2019 pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) referente ao conflito de competência entre a Justiça Estadual e Federal para julgar crimes relacionados à atividade de intermediação de investimentos em criptomoedas, especificamente o bitcoin, as duas esferas se declararam incompetentes.
Na análise casuística, o STJ considerou os posicionamentos emitidos pelo Banco Central e a CVM, adicionando que "a negociação de criptomoeda ainda não foi objeto de regulação no ordenamento jurídico pátrio", por isso os crimes relacionados a moedas virtuais seriam tidos como comuns e de competência da Justiça estadual. O julgamento em questão não possui relação específica com o objeto deste artigo, mas evidencia a dificuldade ou desinteresse do judiciário de classificar a natureza jurídica das criptomoedas sem a existência de regulamentação específica em vigor.
Já na esfera trabalhista, em julgamento recente realizado na Seção Especializada em Execução do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, os magistrados deram provimento ao Agravo de Petição que pleiteava a busca e a penhora de criptomoedas do devedor.
Dessa forma, se há possibilidade reconhecida de penhora de valores a títulos de criptomoedas para satisfação de débitos trabalhista, não parece fazer sentido criar dificuldades para, finalmente, viabilizar a utilização também como meio de pagamento de parte da remuneração.
Talvez pensar em criptomoedas como parcela do salário atualmente ainda seja difícil, mas e se fosse utilizada como meio de bonificação, como já ocorre com outros tipos de ativos, usando como exemplo os contratos de ações negociados através de plano de Stock Options aos empregados?
Parece fazer mais sentido diante do cenário incerto que existe sobre as possíveis regulamentações para transações envolvendo moedas digitais.
Nesse diapasão, concluímos que a possibilidade da utilização das criptomoedas como meio de remuneração — após a definição do legislativo sobre os parâmetros — é factível, mas não para todos os tipos de empregados, já que a utilização e gestão desse ativo demanda um grau elevado de esclarecimento e instrução, mas sim, para aqueles que possuem as condições necessária para assumir esse risco.
 é advogado.
 é sócio da área trabalhista do Bichara Advogados.
Revista Consultor Jurídico, 30 de agosto de 2023, 21h30
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