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Por Ucho Ribeiro – 26/10/2022 10:11:04 |
DARCY RIBEIRO – COMO EU O VI Ucho Ribeiro Darcy teve muitos couros na vida, trocou de peles diversas vezes. Dedicou-se apaixonadamente a várias atividades – foi educador, antropólogo, sociólogo, romancista, político, indigenista… e namorador. Escrever sobre Darcy não é tarefa fácil e nem sou eu a pessoa adequada para tratar de cada uma de suas paixões, obras e ardores. Seus frutos, partos e legados já estão muito bem registrados e divulgados em vasta produção bibliográfica essencial para o entendimento da cultura indígena e da formação do povo brasileiro. Farei um simples depoimento de como era a relação familiar de Darcy e como foi minha vivência com ele. Relatar que na infância havia a expectativa de reencontrar o tio doido, que tinha histórias inventivas para as cabecinhas da meninada e planos mirabolantes e audaciosos para a carranquice dos adultos de Montes Claros. Relembro de muitos fatos, desde a minha primeira visita ao apartamento dele em Copacabana, cheio de artefatos indígenas, quando tomei consciência que índio não era bugre, nem bicho, mas um humano muito criativo. Recordo também de suas visitas à terra natal e da procissão de gente norte mineira curiosa para ouvir o falatório destrambelhado e otimista do ministro da casa civil sobre o futuro – do Brasil que poderia ser, que haveria de ser. Viva ainda está nas minhas memórias a viagem ao Uruguai, para visitá-lo no exílio. Em Montevideo, meninote, assisti, caladíssimo, o seu encontro com Jango, Brizola e Waldir Pires, para tratar de assuntos assisados, incompreensíveis para minha pouca idade. Depois, quando ele voltou para o Brasil, em 1968, e foi preso na Ilha das Cobras. Revivo o medo do mano Fred e o meu de mãos dadas com a coragem de Tia Berta para visitá-lo num quase calabouço no presídio da Marinha. Temor que só se abrandava quando o víamos e ouvíamos as suas historietas ledas e espetaculosas. Poderia contar uma série de passagens de sua vida pública, como quando ele voltou em 1974 para ser operado de câncer e a sua insistência em permanecer no Brasil. Ou mesmo, após a anistia aos presos políticos, quando Brizola e ele foram candidatos vitoriosos ao governo do Rio de Janeiro e, posteriormente, sua candidatura ao senado. Darcy era o inusitado, irreverente até o topo. Nunca podíamos imaginar o que ele iria falar e qual seria a sua conduta para um fato corriqueiro. Não era um comportamento habitual. Normalmente ele tinha uma visão diferente, uma ótica dessemelhante para tudo. Quando indagado sobre qualquer assunto, a resposta era sempre inesperada e, algumas vezes, incompreensível ou até mesmo dura. Cabia a nós decifrar o rebate, pois sempre cutucava, mexia, questionava, ou, no mínimo, nos provocava o pensar. O admirável sobre Darcy era sua erudição. Ele falaria uma tarde inteira sobre galinhas assim como discorreria o dia todo sobre islamismo, mecatrônica ou mesmo sobre minhocas. Por outro lado, ao encontrar alguém que dominava algum tema, fazia questão de ouvi-lo e, se interessasse, ficava horas conversando, extraindo à exaustão todo conhecimento do sujeito. Lembro-me que Darcy, certa vez, encontrou com um senhor que havia sido condutor de tropa (arrieiro, cometa), profissão que existia antigamente. Como não tinha domínio sobre as vivências e habilidades desses bruaqueiros, esmiuçou tudo, perguntou detalhes de cada aparelho e ferragem dos tropeiros. Guardava, sem anotar, todas as informações. Sua memória era fabulosa. À época em que eu fazia mestrado no Ceará, comuniquei a meus pais a intenção em transferir-me para a Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro. Passado alguns dias, surpreso, recebi uma carta de Darcy. Achei interessante que, logo no começo, ao me saudar, ele explicou a origem do meu apelido “Ucho”, corruptela de Marucho, filho de Mário. Elucidou a etimologia de Uxor, relativo a “mulhero”, e professorou conhecimentos do idioma grego e de latim. Em seguida, disse que iria para a Europa a estudos. Inicialmente para Inglaterra, a fim de entender por que os negros nunca se consolidaram por lá, por mais que os ingleses estivessem à frente do comércio de escravos. De Londres iria à Espanha, investigar por que os catalães e os bascos insistiam em se separar da Espanha e qual a causa de os povos da península Ibérica quererem tanto se apartar? Iria dedicar a fundo àquelas pesquisas. No meio da carta, logo depois de explicitar seus interessantes estudos e preocupações, escreveu: “bem, mas não é esse o objetivo desta carta. Estou lhe escrevendo porque seu pai me pediu que eu lhe aconselhasse a não largar o seu mestrado, lhe convencesse terminá-lo bem e voltar para Montes Claros…, para casar-se com uma montesclarense, uma mineirinha, arranjar um empreguinho num banco e morrer de medo de ser cornudo. Mas você faz o que bem entender e me liga para dizer o que está pensando da vida”. Darcy sempre nos catapultava, nos lançava para a vida. Continuamente o seu questionamento era um alerta, ou um incentivo pra gente abrir os olhos e dizer: Aah! Lembro-me que, jogando baralho, quando ele precisava de certa carta, começava a solfejar uma música indígena “Hááá Eeia rá reiá A reiá reiá rá Heinahá!”. Dizia que era para dar sorte. Outras vezes, Darcy blasfemava para conseguir a carta: “Exu… Exu… Exu… vai tomar no cu, Exu. Exu vai tomar no cu”. A irreverência dele nessas brincadeiras era imensa. Mas gostava mesmo era de ensinar, de nos desasnar. Porém, quando perguntávamos muito, durante longo tempo, ele se enfastiava e dizia: “ô… vamos parar por aqui, porque eu preciso pensar. Meu trabalho é pensar, necessito de silêncio, tenho que refletir sobre algumas coisas”. E, professava, “pensar cansa e dói e eu ganho é para isso, para pensar”. De vez em quando ele aparecia para passar com a família um final de semana, um feriado, e sempre havia uns fartos almoços. Não raro, minha mãe ou algum parente falava “ô, gente, vamos agradecer, rezar alguma coisa”. Darcy não dava muita bola para esses ritos religiosos. Ficava na dele, mas, às vezes, alguma visita inadvertidamente dizia: “ah… Darcy podia rezar pra gente”. Aí, meu pai retrucava, “não mexe com Darcy não, deixa Darcy…”. Mas insistiam: “Não… não, Darcy, reza aí”. Ele, então, rebatia assim: “ó… eu rezar o que? Eu não acredito em Deus! Não acredito por culpa Dele! Ele não é onipotente, onipresente?” E destrambelhava, olhando para o céu: “ô Deus, você podia ter me dado fé, mas não me deu, a culpa é sua. Você não é o todo poderoso? Eu podia estar aqui igual todo mundo, morro de inveja desse pessoal que acredita em Você, que tem fé, mas eu não tenho e a culpa é unicamente sua. Se quiser que eu passe a respeitá-lo, eu posso até propagá-lo, mas antes disso terá que me dar fé, mas como Você nunca me deu…, estou aqui aguardando”. Curioso é que Darcy não escrevia os seus livros, nem a mão, nem à máquina, pois não sabia datilografar, como também não sabia dirigir autos. Ele ditava suas publicações… se sentava numa posição de yoga, com as pernas cruzadas em um sofá especial do apartamento e ditava o texto para um gravador que ficava no seu colo. Passávamos longe para não incomodá-lo. Era capaz de passar três, quatro, cinco horas falando em voz alta. Depois suas secretárias colocavam aquelas fitas no aparelho de toca cassetes e, enquanto ouviam, registravam tudo que foi dito. Lembro-me de um pedalzinho que parava a fita, para pausar o áudio enquanto as anotações eram feitas. Tudo era datilografado em espaço dois e o primeiro texto escrito era entregue a Darcy para as devidas correções. Eram dias inteiros naquele trabalho: gravar, digitar, corrigir, revisar, datilografar de novo. Quando ele estava em casa, trabalhava o tempo todo. Nunca vi alguém trabalhar tanto e ser tão ocupado. Era um cara diferente, genial, criativo e afoito. Ousava ter ideias próprias, em vez de ser um aplicado comentarista das ideias alheias. Meu pai dizia, “ô, Darcy, você não foi parido por minha mãe, você foi fundado, teve fita para cortar e banda de música”. Enfim, o importante é que Darcy era um homem de fazimentos, era um homem que não se aquietava hora nenhuma. Ele sempre dizia: “eu só descanso fazendo outra coisa. Quando estou cansado de alguma coisa, eu passo a fazer outra”. Ele era uma pessoa que gostava de fazer, de construir, de realizar, tanto que idealizou, fundou e co-fundou o Museu do Índio, o Memorial da América Latina, o Parque Indígena do Xingu e a Universidade de Brasília – UnB. No Estado do Rio de Janeiro, criou a Universidade Estadual do Norte Fluminense, idealizada para ser a Universidade do Terceiro Milênio; o Sambódromo, a Casa Laura Alvim, a Casa França Brasil e a Biblioteca Pública do Estado do Rio de Janeiro. Tombou 100 quilômetros de praias do litoral sul fluminense e implantou a fábrica de escolas, além de elaborar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação. A maior das suas paixões foi a educação. Era indignado com a educação brasileira. Advertia que, em todo o mundo, o ensino fundamental era em tempo integral. Não existia no planeta escola de meio horário, aula só de manhã ou só à tarde. Darcy escancarava que “nenhum país decente tem menor abandonado. No Brasil, você não vê carneiro, porco ou bezerro abandonado, mas criança abandonada, sim. Isto é a coisa mais triste do mundo”! Nos governos de Brizola, Darcy dedicou-se à implementação dos 506 Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), que ofereciam educação em tempo integral e gratuita para crianças e adolescentes de baixa renda do Rio de Janeiro. No período da manhã os alunos tinham aulas das disciplinas regulares e, no período da tarde, recebiam reforço escolar, formação técnica profissional, esportes e educação artística. Alguns dos CIEPs atuaram como casas de amparo às crianças de rua. Os governos posteriores repudiaram o projeto de Darcy e deixaram de investir nos CIEPs. Os prédios foram transformados em escolas comuns da rede estadual de ensino e o sonho da escola pública de tempo integral foi ignorado. Resultado: a profecia de Darcy se tornou realidade: “Se nossos governantes não investirem em escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construírem presídios”. Sua maior repulsa era a “esses prefeitinhos que desviam dinheiro da educação, que têm a obrigação de gastar vinte e cinco por cento da receita municipal na educação e gastam o dinheiro com outra coisa ou roubam a merenda.” Darcy tinha verdadeira aversão a essas pessoas. O melhor de Darcy era o amor pela vida, a alegria de viver. Ele ficou muito aborrecido quando soube que findaria. Tinha mil coisas para fazer e indignava-se com aqueles que se acomodavam e deixavam a vida passar. Ele daria tudo para ter mais um ano de vida, e realizar mais alguns projetos. Darcy nos comovia, instigava-nos a viver, a acreditar que podemos melhorar o mundo, que o Brasil é a grande nação, que esse país poderia ser passado a limpo. Despertava nossas consciências ao afirmar que “o Brasil já é a maior das nações neolatinas, pela magnitude populacional, e começa a sê-lo também por sua criatividade artística e cultural. Precisa agora sê-lo no domínio da tecnologia da futura civilização, para se fazer uma potência econômica, de progresso autossustentado.” Vaticinava que a América Latina será a nova Roma, uma Roma melhor, porque lavada em sangue índio, em sangue negro e que as grandes transformações, mesmo com tantos deslizes, irão surgir e florescer nessa nova civilização, mestiça e tropical, que está sediada na província mais bonita, mais generosa, mais fraterna do universo. * Ucho Ribeiro é sobrinho de Darcy, filho do ex-prefeito de M. Claros, Mário Ribeiro, e depois, por sua vez, vice-prefeito. É funcionário aposentado da Receita Federal. |
Por Ucho Ribeiro – 13/4/2022 08:08:14 |
HAROLDINHO, L`ENFANT TERRIBLE Hoje morreu-me mais um. E este foi um dos bons. Do coração. Meu irmão, meu amigo, meu irreverente mentor, meu “open mind”. Leu tudo, sabia de tudo, porém exorbitava ao dar a sua interpretação para a vida, pois desprovia de toda e qualquer praticidade. Delirava em ideias e projetos para o mundo, cabeça nas nuvens. Nunca aterrissou, não tinha os pés no chão. Todo amigo é “porreta” e a grande merda de envelhecer é ver os nossos especiais morrerem. Mas Haroldo Costa Tourinho Filho, Cab´s, Cabaret, foi um desses admirados não só pela cúmplice amizade, mas pela audácia. Creio que seu atrevimento veio por ser um beatlemaníaco de primeira hora. A proposta inicial da banda inglesa era causar incômodo. Haroldo, fã incondicional, baterista, ficou insolente como os beatles, e pra nós, mais jovens, aquilo tudo era divertido e corajoso, pois não deixava de ser uma voz contra a autoridade careta. Desafiava os mais velhos e ironizava a carranquice curraleira de Montes Claros. Alertava-nos que o mundo estava a virar de ponta a cabeça e caçoava a rapaziada da terrinha que achava a Exposição Rural o maior espetáculo da terra. Haroldo vivia sintonizado no mundo, estava ligado no desenrolar dos protestos estudantis em Paris, na guerra do Vietnam, em assistir a peça Hair, em vadiar por Piccadilly Circus, Trafalgar Square e Soho em Londres, em assistir um show de rock no Cavern Club, em saber sobre os lisérgicos tours no Central Park em New York, e, principalmente, onde conseguir o último álbum dos Beatles ou dos Rolling Stones. O conheci em março de 1974, ele morava na rua da Bahia, em frente ao Cine Guarani em Belo Horizonte, no quarteirão do Maleta. Meses depois, com a minha ajuda para carregar sua copiosa discografia e biblioteca, mudou-se para a rua Guajajaras e passou a ser meu vizinho. Quando eu não estava na faculdade era certo me encontrar em seu apartamento sempre numa conversa plural a palpitar sobre os grandes problemas do mundo. Cinéfilo como eu, íamos ao cinema com frequência e de lá empoleirávamos em algum bar para fazer a resenha do filme. Antes da meia noite eu pegava o caminho de casa e Cabaret continuava pela madrugada adentro. No dia seguinte, eu acordava e ia para a faculdade e ele matava aula, pois dormia a manhã inteirinha, abraçado aos livros. Era urbano, citadino, boêmio, noctívago, como tantos dos meus melhores amigos. Um espécime raro em extinção. Tinha uma sapiência vadia, sem objetividades, moléstia comum de um segmento da intelectualidade mineira, que tudo quer ler, de tudo quer saber, por pura fruição. Para esta casta letrada o saber não tem serventia para o que é funcional, prático. Haroldo era erudito em todas as nuances e sutilezas, mas com arrogâncias afloradas à medida que o grau etílico aumentava. Não era alguém que dava palpite raso, como muitos senhores do achismo. Falava com conhecimento profundo, porém quando avinhado dava aflição vê-lo manifestar sua opinião, muitas vezes desmedida. Abusava de toda a sua erudição para participar de um bate papo trivial num boteco, ficava prolixo e tornava o papo enfadonho. Sabia o suficiente sobre direito, política, arte, literatura e qualquer outro assunto que não fosse vulgar. Por diversas vezes o ouvi aniquilar certas pessoas néscias com uma frase, embora o ofendido por ignorância não entendesse o tiro certeiro e devastador. Haroldo foi uma mistura de Roniquito Chevalier e Charles Bukowski tupiniquim. “Sóbrio, era um gentleman. Bêbado, ficava destemido, adotava um temperamento belicoso. Ninguém podia ser patife perto dele. Os conhecidos não ousavam, pois seriam desmascarados”. Não raro, Cabaret levava uns esbarros de alguns chucros desvelados. O seu conhecimento era de uso frívolo, especulativo, imaginoso, não o utilizava para a gestão da sua vida e do seu sustento. Foi um pródigo. O que tinha gastava hoje, não tinha amanhã. Viveu a vida conforme suas concepções, audacioso e petulante, sem hipocrisias. Sempre de cabeça em pé, orgulhoso. Eu invejava sua coragem. Fui seu padrinho de casamento e ele o meu primeiro empregador, quando ocupou um elevado cargo no Ministério da Educação, em Brasília. Eu era seu funcionário amanuense durante o expediente e assíduo parceiro de gole à noite. Muito do que eu escrevi, Haroldo copidescou com maestria. Era um bamba na pena. Certamente deve ter muita coisa escrita e guardada no seu apartamento. É premente achar os seus originais e publicá-los. Sua responsabilidade, viu, Henrique! Na quarta-feira, 23 de março, como fazia sempre, encaminhou-me copiosa postagem da Folha de São Paulo e, em seguida, pediu-me para ser internado no Hospital Aroldo Tourinho, pois estava fraco, com dificuldades para respirar. Liguei para o provedor Paulo Cesar Almeida, que foi de uma atenção desmesurada, gentilíssimo. Haroldinho, ao chegar no hospital, mandou-me sua última mensagem, em gratidão: “queixo caído com o apartamento do PC: geladeira sofá, poltrona, netflix, terraço…estou no céu.” Horas depois, seria encaminhado para o CTI e intubado. Adiou o que pode o seu internamento, só pediu ajuda no finalzinho para preparar o seu mergulho para a morte que o vinha cercando fazia tempo, com toda a naturalidade de quem sabia que chegara a hora de reciclar-se para a vida eterna. Parodiando Mario Varga Llosa, o mundo dos rebeldes com frequência é pago com os seus desejos, mesmo sem desistir deles. A vida não é a busca de um ponto de chegada, mas a degustação de uma série infinita de caminhos, de encruzilhadas, de decisões e dilemas. Para estes sonhadores não há ponto de chegada, apenas um caminho ao longo do qual eles querem continuar. A vida se sustenta em seu próprio curso, em seu próprio movimento. O importante não é chegar. O importante são as descobertas, as experiências, as aventuras da jornada. O que os enriquecem, o que os fortalecem e o que os fazem ser verdadeiramente livres é continuar a viagem. Boa viagem, meu querido. Vá em paz meu amigo, irmão, protetor, professor, guru, parceiro, afilhado, meu utópico sonhador. Descanse, menino, com todos os livros e alfarrábios do universo a sua volta, seus verdadeiros e grandes amigos, pois sei que você levou mais horas da sua existência lendo prazerosamente do que vivendo. Um beijo terno do para sempre amigo Ucho. |
Por Ucho Ribeiro – 14/12/2018 10:28:40 |
VIVENDO DE AMOR
Ao escrever “Cine São Luiz, meu Cinema Paradiso” contei que o padre da cidadezinha italiana, onde se passa a história, censurava os filmes a serem exibidos, por questões morais e religiosas. Exigia que todas as cenas de beijo, por ele consideradas obscenas, fossem cortadas pelo projecionista Alfredo. Aqui no Norte de Minas, aconteceu um fato semelhante. Antigamente, como havia dito, antes de iniciar a exibição do filme, tocava-se um prefixo musical para alertar a plateia que o espetáculo iria começar. Numa vizinha cidade, que por discrição não cabe mencionar o nome, a música executada não era sempre a mesma, como em Montes Claros. Tocavam-se os “Tops” das paradas de sucessos das rádios. O público ao entrar no cinema, informava ao bilheteiro a canção que gostaria de ouvir, e este avisava ao operador da cabine de projeção a mais votada para ser tocada na possante vitrola radiofônica. Naquele ano, 1960, o sucesso das paradas era um antigo sambinha, composto em 1936 por Lupicínio Rodrigues, mas muito bem revigorado na voz da promissora cantora Elza Soares – “Se acaso você chegasse”. Nome do seu primeiro long play. A rapaziada, ao entrar no cinema, pedia “bota a Elza para nós”. O refrão da música dizia: “De dia me lava a roupa… de noite me beija a boca, e assim vamos vivendo de amor”. O velho sacerdote da cidade, ranzinza e moralista, tinha pavor do “me beija a boca”, e do “vivendo de amor”. Nos sermões, desancava a canção e a pouca vergonha da letra. Vetou sua execução nas quermesses, nos leilões e proibiu de tocarem a música nas sessões de cinema. A revolta foi geral. Na igreja e nas quermesses o padre mandava, mas no cinema já era demais. O povo protestou e decidiu que, se não voltasse a tocar o disco da Elza Soares, todos deixariam de assistir os filmes. O dono do estabelecimento, vendo que seu negócio ia naufragar, entrou num acordo com o sacerdote. Uma censura pontual. Levou o padre até a cabine de projeção, mandou tocar o disco e, com o dedo marcou o exato momento do “beija a boca”. Retirou o LP do prato e, em seguida, entregou ao padre uma tesoura para que ele fizesse um pequeno risco na parte pontuada. Feito o serviço, o proprietário do cinema consultou o sacerdote: – Pronto, Reverendíssimo? Agora podemos tocar o disco? O padre, todo inchado, vitorioso, autorizou: – Pode! Na sessão daquela noite, sala cheia, todos na maior expectativa, depois de terem votado quase unanimemente no sucesso de Elza Soares, caíram na gargalhada ao ouvir a música. A emenda ficou pior que o soneto. Com o risco do padre o sambinha ficou assim: “‘… de dia me lava a roupa…, de noite fuc, fuc, fuc…, e assim vamos vivendo de amor…”.
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Por Ucho Ribeiro – 3/12/2018 10:16:11 |
“TEM GENTE!”
A Vila das Formigas cresceu recheada da alegria das mulheres-damas. Nunca segregou ou delimitou a sua zona boêmia. Casas de encontros, algumas exuberantes, ocupavam as ruas centrais do povoado. Putas de todos os quilates enxameavam livremente o comércio nos dias de feira e, aos domingos, frequentavam as missas, mais para se mostrarem do que por religiosidade. Para chamar a atenção, chegavam com o culto iniciado, exalando o eterno pachuli e exibindo vestidos de sedas e rendas raras. As esposas dos cidadãos assistiam a tudo caladas, sem direito a pio ou resmungo, com os olhos invejosos na opulência das vestimentas das raparigas dos seus maridos. Eram as mulheres dadivosas, sempre alegres, esperando… Famosas putas marcaram época em fases diversas da história municipal, com os seus inesquecíveis apelidos: Mariquinha do Arraial, Maria Serrana, Canarinha, Chiquinha Baronesa, Douradinha, Aninha Parafuso, Mariazinha C* de Ferro e, ultimamente, Roxa, Leobina, Zinha, … Em sua obra, Guimarães Rosa conta sobre a contumaz fartura boêmia montes-clarense e chega a destacar, na novela “Dão-Lalalão” (Corpo de Baile), o romance de Soropita, vaqueiro e ex-jagunço que, apaixonado pela faceirice sensual da “militriz” Doralda, mulher que é ”o estado de um perfume”, a retira de um bordel de Montes Claros para fazer dela sua esposa. A atual rua Padre Teixeira, em tempos idos, chamou-se rua da Raquel, por nela residir uma cobiçada dama, com sangue hebraico, que o povo dizia ser turca. Ela veio do Recife para a Vila das Formigas, amasiada com um vigarista, jogador de baralho que, depois de limpar muitos patos, foi flagrado em trapaça e acabou espetado numa casa de jogo. Raquel, desimpedida, sentiu-se livre para disponibilizar os seus atrativos e seu irresistível poder de sedução. Passou a atender, reservadamente, cavalheiros recatados e abonados. Com o tempo, sua fama propagou-se devido às lascivas e exclusivas peripécias, práticas desconhecidas do mulherio local do metiê. Raquel residia defronte ao escritório de Waldemar Tic-tac, contador metódico e obcecado em controlar tudo à sua volta. De olho no relógio, sabia o horário da chegada e saída de todos os funcionários do comércio e fazia um verdadeiro rastreamento na rotatividade da madama. Os clientes dela tinham horários pré-estabelecidos de permanência, hora e meia, e a entrada a sua casa era precedida por uma batida na porta com um repique em código previamente definido. Batida certa, toc-toc, totoc, porta aberta. Certa feita, um mancebo erado do Brejo das Almas, atraído pelas prendas da loba hebraica e desavisado, veio bater à sua porta sem prévio agendamento. Batia, dava um tempo, batia de novo e nada… Waldemar Tic-tac, do lado oposto da rua, já registrara pela janela do escritório que um velho freguês havia entrado na casa alguns minutos antes e devia estar a desfrutar o seu tempo. Assim, ao ver o rapaz insistir nos batimentos, não se conteve e bradou: – Oi! Pst! Psiu! Ô moço, não tem ninguém aí, não!
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Por Ucho Ribeiro – 27/11/2018 16:48:55 |
Cine São Luiz, meu Cinema Paradiso UCHO Ribeiro A maior diversão da minha infância era o cinema. Fonte de riso e alegria. Queria ver todos os filmes, porém, a rotina de escola, deveres escolares, catequese-cruzadinha, intermináveis missas e a pouca idade para assistir a certos filmes, impediam-me de realizar o sonho. Tudo precedia ao cinema: – Você só vai à matinê depois de estudar… O pior castigo era ser privado do prazer de sonhar e deliciar-me com as histórias cinematográficas. Hoje, com a tecnologia do “streaming” e “download”, os meninos veem os filmes que quiserem, a qualquer tempo, sem nenhuma restrição ou censura. Fico a imaginar se, nos velhos tempos, tivéssemos à mão a “Netflix”, “Amazon Prime”, o “You Tube”, as redes sociais, o que seríamos atualmente? Para termos acesso a uma putariazinha mínima, tínhamos que conseguir algum exemplar do catecismo do Carlos Zéfiro, coisa das mais difíceis e sigilosas do mundo. Atualmente, a criançada tem tudo, o possível e o inimaginável, na palma da mão, através de seus celulares e “tablets”. As sessões do São Luiz aconteciam às 16 e às 20 horas. Nos finais de semana, havia as seções extras de 14 e 22 horas e, especialmente, aos domingos, passavam filmes às dez e meia da manhã, para pegar a garotada saindo das missas. Lembro-me na igreja, o corpo presente, mas a mente mirabolando longe, no tiroteio dos faroestes, no futebol do Canal 100 ou nos outrora filmes bíblicos Ben Hur, Sansão e Dalila… A entrada dos cinemas era inundada de crianças a espera do espetáculo. Umas teatralizavam o que veriam, com todos os gestos, uivos e bang-bangs; outras trocavam figurinhas do último álbum e algumas expunham nas calçadas os seus gibis, já lidos, para serem comercializados. Vendiam apenas o suficiente para obter o dinheiro do ingresso. Terminada a missa, eu saía da Matriz direto para o São Luiz. Não desviava um passo do trajeto. Tinha uma “permanente”, entrada franqueada concedida às famílias sócias dos cinemas. Subia correndo a escada lateral, que levava ao segundo piso, onde ficava a sala dos mistérios – o recinto da projeção era um útero pra mim. Ali, sentia-me protegido, confortavelmente instalado, observando e descobrindo detalhes no que eu mais amava, a mágica cinematográfica. Ao adentrar a ilha, cumprimentava Osmar, o projecionista do filme, que era o meu Alfredo do Cinema Paradiso. Ele, quase sempre calado, me respondia com leve aceno de cabeça e continuava a revisar os rolos do filme a ser projetado. Naquela época, um filme de quase duas horas, ocupava entre cinco a seis rolos de fita. A sala de projeção possuía normalmente dois projetores, que se revezavam. Colocavam-se os dois primeiros rolos nas máquinas e, à medida que um terminava, era logo substituído pelo seguinte. Enquanto um rolo era projetado, o outro era carregado pelo operador. Ficava encantado com Osmar tirando o filme da bobina e colocando-o no projetor. Os furinhos nas laterais da película se encaixavam nas rodas dentadas da máquina, que iam puxando a fita e fazendo cada fotograma do filme parar diante da luz e se tornar imagem. Era tudo ligeiro e misterioso. E o mais incrível foi entender a explicação de Osmar: – A cada segundo, 24 fotogramas passam pelas lentes e essa é a velocidade que faz com que a imagem pareça estar em movimento. Bingo! Ali estava a mágica. Para quem assistia ao filme, sentado nas poltronas, era tudo fantasia: luz, som e sonho. Mas eu, na sala de projeção, via a luz passar pelo obturador, a plaquinha de metal que, segundo Osmar, antes de iluminar o filme, girava e bloqueava a luminosidade durante a passagem de um quadro a outro. Assim, durante a fração de segundo em que o fotograma ficava parado, era iluminado por uma forte luz emitida pela queima de um lápis de carvão, que se consumia incandescentemente. A fita entrava na máquina de cabeça para baixo e, ao ser iluminada, passava por uma lente, onde a imagem era invertida e então projetada na tela. Descobri também que, durante a projeção, um aparelho lia o som a partir de uma faixa magnética afixada na lateral da película, semelhante a uma fita cassete. Esse equipamento convertia as informações em um sinal elétrico enviado a um amplificador que, por sua vez, mandava-o para os alto-falantes do cinema. Para entrar em sincronia com a imagem, o som ficava entre 19 a 20 frames adiantado. Daí que aprendi a diferença entre a velocidade da luz e a do som. Ao final de cada rolo, o filme era colocado em outra bobina, disposta em uma bancada, e então eu ajudava o Osmar a rebobiná-lo, girando a manivela para voltá-lo ao começo. Nessa bancada, utilizada também para cortes e remendos das fitas, era onde eu tinha acesso aos meus maiores tesouros: os pequenos pedaços das películas. Eram tiras com vários fotogramas que o Osmar me dava ou eu sorrateiramente surrupiava. De posse dessas preciosidades e dos tocos dos bastões de carvão queimados, me sentia o tal. Recordo muito das quebras das fitas, do barulho das máquinas, flaup-flaup-flaup, do clarão da projeção na tela, das vaias dos espectadores, dos gritos “Ô Jacó!”, pois nesses momentos dos remendos dos filmes era que sempre sobravam umas tirinhas de película para eu guardar e deliciar-me mais tarde. Meu sonho era aprender a colocar a fita no projetor, mas isso o Osmar não deixava, e permitia apenas que, após deixar o cinema à meia-luz e recolher as cortinas, eu rodasse, no simplório projetor lateral, o disco com slides de propaganda das lojas comerciais, ao som do prefixo musical “Love Letters”, by Victor Young(*). Com o tempo, essa tarefa tornou-se sem graça, mas, mesmo assim, sentia-me um assistente da arte cinematográfica. Hoje, mais velho, revejo sempre o filme “Cinema Paradiso”. É uma carta de amor ao cinema e assisti-lo é sempre uma alegria. Muitos amantes da sétima arte classificam esse filme como o seu favorito, pelo enorme charme da história, pela visão nostálgica dos vários filmes mostrados na película e pelo efeito que eles têm na vida de um garoto (Toto), que certamente é o roteirista/diretor Giuseppe Tornatore. O menino cresce dentro da cabine do projecionista Alfredo e ao redor do cinema da cidadezinha italiana. Entretanto, o mais encantador do filme está nas reminiscências de Toto, que registra a vulnerabilidade de nossos sonhos e memórias. Ele lembra que o padre da cidade, o proprietário do cinema, por questões morais e religiosas, censurava todos os filmes a serem exibidos, exigindo que todas as cenas de beijo fossem cortadas pelo operador Alfredo, tidas como obscenas pelo sacerdote. Trinta anos depois, Toto, já homem feito, cineasta famoso, vai até a sua cidadezinha, ao velório de seu amigo Alfredo, que lhe deixou um pequeno presente em uma lata de filme. A história se encerra com a projeção da singela montagem de todos aqueles beijos proibidos recortados das películas. Uma cena repleta de momentos de paixão e sensualidade. Para mim, o mais belo e emocionante final de filme. The End. (*) Obs: Prefixo musical do Cine São Luiz (Década de 60): “Love Letters”, by Victor Young (https://www.youtube.com/watch?v=7JlKWWJdY7U). Prefixo musical do Cine São Luiz (Década de 50): “Jurame”, de María Grever (https://www.youtube.com/watch?v=dZb8W-ln-jU). Prefixo musical do Cine Fátima: “Doucement”, by Jean Paques (https://www.youtube.com/watch?v=4kR8TjHx8I8) |
Por Ucho Ribeiro – 19/11/2018 11:25:13 |
VADE RETRO
Aracy teve uma vida difícil. Nasceu numa família pobre, pai alcoólatra, mãe caixa de supermercado, foi aluna de escola pública suburbana e a única filha no meio de quatro irmãos, marmanjos que viviam à toa. A dura realidade a fez perceber que sonhos de bela adormecida e príncipes encantados não se realizariam. Entendeu, menina, que só o estudo lhe daria a chance de sair daquele fado de pobreza. Após a escola, empacotava feiras no caixa da mãe, dando a ela as gorjetas recebidas para ajudar nas despesas da casa. Dedicava o tempo que sobrava às tarefas escolares e à leitura. O empenho nos estudos a fez arranjar emprego de escriturária numa contabilidade do subúrbio. Ralava seis dias por semana, fazia horas extras e nunca tirava férias. Num dos serões, casta, caiu na lábia de um habitual galanteador, com promessas de casamento e vidinha do lar e acabou buchuda. Mãe solteira. Desabaram as quimeras e ilusões. Aracy isolou-se, pactuou-se com a amargura. Sua vida restringiu-se a educação de Esperança, sua filha. Ela, sim, teria uma vida de sucesso, seria bem casada, lhe daria netos e orgulho. Criou a miúda com toda proteção e nos melhores colégios possíveis, sempre a alertando sobre as maldades do mundo e a lábia dos garanhões indolentes. Nada de namoro, festinhas e más companhias. A cada amizade que Esperança iniciava, era logo sabatinada sobre a origem e as intenções do pretendente. Afora o seu diuturno trabalho contábil e a sua fiscalização a rédeas curtas da vida da filha, Aracy se dedicava orgulhosa ao seu curso de advocacia por correspondência e ao estudo do latim. No seu cotidiano, utilizava de frases latinizadas para alimentar seu ego e impressionar seus compartes contadores. Até mesmo em casa abusava da língua mãe para falar com a sua filha. Se a menina se preparava para sair, ela logo questionava: – “Quo vadis”, Esperança? – Mãe, vou encontrar com uns colegas de escola. – “Nota bene”, o “status quo” não está mole, evite “persona non grata”. Se eu te pegar “in flagrante delicto”, você vai ter comigo. Ninguém vai abusar da minha filha. Você veio ao mundo para bradar: “Veni, vidi, vici!”. Lembre-se, sempre: É “sine qua non” permanecer pura até o casamento! Os anos passaram, Esperança, mesmo sobre vigília intensa, namorou, noivou e casou. Na despedida para a lua de mel, ouviu de Aracy: – Cuidado, todo o cuidado quando estiver “in natura” com ele. Se dê ao respeito. Olha o “modus operandi” que te ensinei. A viagem de núpcias ocorreu sob uma expectativa imensa. Aracy nunca tinha ficado tanto tempo longe da filha e fez de tudo para não ligar e escarafunchar detalhes. Na volta da sua cria, inquiriu sobre toda a viagem de núpcias, até que fez a sua derradeira pergunta: – E aí, minha filha, “consummatum est”? Esperança assentiu com a cabeça, levantou as pálpebras, e confidenciou com os olhos bem abertos: – E “oeste”, mamãe. |
Por Ucho Ribeiro – 12/11/2018 11:09:42 |
QUINCA
Quinca era um menino danado. Traquinas. Adorava um mal feito bem feito, sem rastros. Os mais velhos sabiam ser ele o autor da arte, mas não tinham como provar. Bom aluno, bom de bola, enturmado e presepeiro com a molecagem de dentro e de fora do colégio. Ao chegar da aula, fissurado numa pelada, jogava o uniforme para o lado e despencava para um campinho a fim de não perder o racha. No final do ano, no encerramento do primário, uns padres de batinas pretas passaram a ser frequentes em sua escola. Visitavam as salas de aula, propagandeavam sobre vocação sacerdotal, sobre a alegria de viver para Cristo, e pormenorizavam a “divertida” vida eclesiástica. Profetizavam que entre cada atividade de estudo e rezação, havia muito futebol, natação e outros esportes, pois na educação cristã moderna devia prevalecer o ideal da mens sana in corpore sano. Secavam os alunos de inveja ao contar que, nos finais de semana, os seminaristas participavam de torneios esportivos e acampamentos em cavernas e rios. A meninada crescia os olhos, afinal, o melhor time da cidade era o dos padres. Além disso, havia as artes cênicas, o teatro, a possibilidade de subir nos palcos e apresentar as peças por Minas afora. E a piscina? Coisa rara. O sonho da molecada, que só tinha os rios para nadar. Quinca não entendia como aqueles garotos tímidos e ingênuos, enclausurados naquele mosteiro, eram tão bons de bola. Mas embalado pela música da copa de 58: “A taça do mundo é nossa, com brasileiro não há quem possa”, não resistiu à goma teológica-futebolística, chegou em casa, assertivo: – Mãe, eu quero estudar no seminário e ser padre. A mãe, que há tempos passava o dia em preces para que seu rebento não puxasse à boemia do pai, teve certeza de que a decisão do filho era a resposta a suas orações. – Você quer mesmo ser padre, meu filho? Dia seguinte, eis que chega o marido meio alto, depois de tomar umas e outras, envolto em aromas de perfumes baratos. Dona Ruth subiu nas tamancas: – Muito bonito, Seu Lourivaldo! Não dorme em casa e chega alcoolizado com este futum de rapariga. – … – É melhor ficar mudo mesmo. Quem tá calado, tem culpa. Mas é bom estar ciente que Quinca não vai seguir seu rastro, não. Quinca vai ser é padre. Isto mesmo, pa-dre! Pelo menos ele vai se salvar desta sina de randevu e cachaça. – Padre, o cassete! Filho meu não veste batina! Aquela notícia desmontou o pai. Ficou encucado: – “Imagina só, Quinca padre? Era só o que faltava. Um capetinha desse ser projeto de santo. Isto só pode ser armação de Ruth para infernizar minha vida”. Dias depois, Lourivaldo encontrou com o seu compadre, Zeca de Ferraz, chefe político do município, padrinho de Quinca. Era um gordão sorridente, imenso. Um popular glutão que vivia cercado de comida e de gente embasbacada diante de sua sagacidade política. Não trocaram meia dúzia de palavras e Lourivaldo confessou sua lástima. – Compadre, compadre, cê precisa ver o que sua comadre Ruth está querendo fazer com o seu afilhado Quinca. Quer transformar o menino em padre. Logo o garoto, que é um triquetraz, esperto pra danar, dá nó em pingo d’água, pode ser tudo na vida e vai ser desperdiçado numa beatice dessas. Só o senhor me ajudando, dando uns conselhos pro pequeno e pra mãe dele. Zeca permaneceu calado por um instante e disse: – Lori, diga a comadre Ruth que eu estou com saudade do franguinho com ora pro nobis, que só ela sabe fazer. Avise que passo lá pra almoçar no domingo. E lembre-se de debrear na bebida neste resto de semana. Fique mansim, mansim… Avisada a patroa, Lourivaldo ficou domesticado, regulado na bebida, ciscando maneiro dentro de casa até que chegaram o domingo e a esperada visita do compadre Zeca. Tudo corria bem, Ruth gostava do compadre pela sua gentileza e apreço que tinha com a família. Já havia servido tira-gostos, cervejinha, e ficou na cozinha arrematando o frango tão esperado, mas de escuta nas conversas dos compadres, pois o coronel sempre dava noticias sobre os fuxicos recentes. O papo ia de vento em popa, quando de repente Zeca de Ferraz perguntou a Quinca, que a tudo escutava: – E você, meu afilhado, o que você vai ser quando crescer? – Ô, padrinho, eu vou ser padre. Ano que vem já vou pro seminário, né, mãe? – Que isso, menino, num esperdiça sua vida, não. Cê pode ser tudo, basta querer. Imagina você piloto de avião, craque de futebol, marinheiro, cientista? Você pode morar no Rio de Janeiro, em Nova Iorque, em Paris. Eu sou seu padrinho e vou te ajudar a ser o bamba… Pronto. Foi o que bastou para dona Ruth, lá da cozinha, sair da toca: – Compadre, com todo o respeito, não vem que não tem. Já percebi que este frango é pura armação sua e de Lourivaldo pra dobrar o pobre do Quinca pra não ser padre. Pode tirar o cavalo da chuva que o Quinquinha vai ser padre mesmo. Já tamos decididos. O silêncio tomou conta da casa. Aos poucos a conversa tomou rumo de chuva, da dificuldade com a criação na seca, até se aprumar de novo com as perspectivas da eleição e a necessidade de visitar os currais eleitorais. Entre uma e outra cerveja, Zeca resolveu esvaziar a bexiga e pediu seu afilhado para encaminhá-lo até o banheiro. Lá chegando, retomou a conversa antes interrompida. – Quinca, quando tinha sua idade, eu também estava decidido ser padre. Cheguei até a entrar no seminário. Nesse mesmo que você está pensando em cursar. Mas é bom você ficar sabendo de uma coisa… Seu Zeca começou a afrouxar o correão, que apertava sua enorme pança, baixou as calças, e arrematou: – A primeira coisa que os padres fazem com os novatos que chegam ao seminário é cortar o pinto deles pela metade. Veja a maldade que fizeram com o meu. Eu acho até que eles cortaram mais que a metade, não acha? A vocação sacerdotal escafedeu-se. |
Por Ucho Ribeiro – 5/11/2018 20:11:04 |
INFLUENZA
Os antigos dizem que os dois tipos de homens prestantes, que Pedra Azul melhor sabe fazer, são o matador de gente e o amansador de burro. Ao amanhecer, nas fazendas daquelas terras, a garotada sai pros pastos atrás de um animal, que a servirá o dia inteiro, no curral, no aparto e na solta do gado, na ida pra escola, no retorno e nas estripulias do resto do dia. À noite, as mães têm de ralhar para apartar os meninos da tropa. O apego é demais. A afeição, desde a infância, pelas montarias, forja apelidos pelo resto da vida: Pedro da Jega, Mané Minha Égua, Tamburete de Piquira, Funga Cio, Zé Tiché. Na chacota, os mais idosos arreliam a meninada dizendo que a namorada deles é a Maria Rincha. Brincadeira que tem um fundo de verdade. Tem muito moleque que nervoso escancara o ciúme pela sua eguinha. Não deixa nem o melhor amigo passear com sua bichinha. A garotada cresce subindo nos cupins da fazenda, conhecendo-os pelo aprumo ideal para o alcance da namorada e pelo resguardo para não ser flagrado. Quando um menino desaparece com a sua montaria, os homens velhos e novos já sabem o destino. Pedro da Jega, por exemplo, ganhou o afetuoso apelido porque o fazendeiro o mandou pegar uma jumenta no brejo e, por estar demorando demais, foi atrás pra conferir. Chegando lá, avistou Pedro em cima de um cupinzinho, abraçado no traseiro da jerica. Foi quando, gaiato, gritou: – Pedro! Pedro! Empurrando ela não vem não! Se você não puxar pelo cabestro a jega vai ficar aí empacada a manhã inteira. Na fazenda dos Antunes havia uma ninhada de meninos excitada com uma tropa nova, recém-chegada, sortida de potras e éguas mansinhas de passar por baixo. A meninada arteira era de idade variada. Os mais novos apreendiam com os mais velhos a montar, cavalgar e arrear os animais, bem como domar as éguas e até ferrá-las e ferroá-las. Tiziu, azarado, um dos menores garotos, gripou nas férias e a mãe não o deixava brincar com os outros, queria que ele ficasse deitado tomando chazinho de capim cidreira com gengibre. Nada de sol quente e travessuras. O coitado estava pra morrer de tristeza, preso ali no quarto, só vendo pela janela, os amigos naquela arrelia e satisfação. Ao perceber que seus companheiros agruparam a eguada e a tocaram para a baixa perto do rio, onde estavam os cupins mais apropriados, não aguentou, pulou da cama decidido. Ao passar esbaforido pela sala, sua mãe ralhou: – Perái, Tiziu! Onde cê pensa que vai? – Ô Mãe, eu só vô ali, rapidim, comê as éguas com os meninos e já volto! – Que isto, moleque, cê tá doido? Que história é essa? – Mas Mãe, é na sombra! Debaixo das mangueiras. |
Por Ucho Ribeiro – 29/10/2018 10:55:07 |
MUI AMIGAS
Glorinha e Sarita se sentiam as grã-finas do pedaço, e eram. Afinal, foram arrancadas da efervescente capital para viver ilhadas na jequice daquela cidade, distante de tudo. Sentiam-se ludibriadas. Na juventude, eram os morangos da sobremesa nos bailes do Minas Tênis Clube, desejadas pelos melhores partidos belorizontinos, e foram levadas para o interior pela lábia de dois médicos recém formados. Jamais pensaram em levar uma vida pacata, bucólica, campestre – sonhavam com Paris, New York, com o “jet set”. Todavia, o mundo dá e deu as suas voltas, e olhem onde elas foram parar: na vidinha sem glamour, donas de casas, conferindo as tarefas dos filhos e passando os finais de semana no campo. Se levassem convidados à fazenda, seria um arrependimento sem fim. Os homens se juntavam para prosear sobre bois, vacas e cavalos e sobrava para elas a companhia das capioas esposas, que só falavam de meninos e empregadas. A comida? Churrasco e cerveja. Urgh! Sarita e Glorinha, convictas que embarcaram numa furada, sem retorno, decidiram fantasiar suas vidas nas alegorias dos seus sonhos juvenis. Sabedoras da farta e disponível grana dos maridos, passaram a gastá-la em festas e recepções. Turbinaram um jovem e vaidoso cronista social e ditaram as normas e a moda local. Esbanjavam charme e ostentação e, volta e meia, arregimentavam o “beau monde” belorizontino para os seus “happenings”. Suas festas eram um sucesso, black tie obrigatório, regadas a champanhe e fino scotch. No jornal da semana, o cronista, adestrado, relatava didaticamente as iguarias dos jantares e as recepções das socialites, registrando o cardápio da noite, a cor da toalha da mesa e a procedência da louça e prataria utilizadas, bem como a descrição pormenorizada dos vestidos das senhoras. Era um “insider” indiscreto que mostrava para o ávido público curraleiro os últimos gritos da moda e da “fine burguesy”. O prazer maior era, com o olhar de águia, criticar a bico pequeno a jequice das envelopadas madames locais: – Olha aquela ali de chapéu coco em festa noturna! Para decepar a recepção de uma emergente, suas observações eram afiadíssimas: – Você viu a festa ontem, tirando a comida fria e o champanhe quente, o resto estava razoável! Nos clímaces das festas, no porre mais sublime, erguiam as taças, brindavam e, parodiando Zózimo, esgoelavam, à gargalhadas: “Enquanto houver champanhe, há esperança!”. A vida foi uma festa, intercalada de viagens e deslumbres. A carneirada, cega e sem noção, as seguiu, na ilusão de um dia ter também em mãos a flauta de Hamelin para entorpecer outros carneirinhos, mais inocentes. Os anos passaram atropelados, num hedonismo e pseudo glamour. Com o galope do tempo, o champanhe minguou, a esperança evanesceu, a badalação perdeu o charme, tudo foi um sopro. O “créme de la créme” se resumiu ao carteado semanal jogado pelos casais nas casas de Glorinha e Sarita. Porém, as calmas noites de buraco, embora enfadonhas, eram salpicadas por picantes alfinetadas das duas ofídeas. Advindos mais anos, os maridos se foram, a Sarita foi picotada pelo álcool e diabetes e a Glorinha foi se apagando pelo Alzheimer. O carteado tornou-se impossível. Os encontros das duas amigas se resumiam a visitas eventuais que uma fazia a outra, até que a Glorinha se enclausurou definitivamente devido à doença e a Sarita passou a visitá-la esporadicamente. Na passagem do milênio, a Sarita, já sem as duas pernas, ceifadas devido às complicações do diabetes, foi ver a amiga lelé, para lembrar-se dos outrora réveillons. Ao chegar à casa de Glorinha, anunciou-se. A enfermeira foi até os aposentos da amiga, no segundo andar, e avisou-a: – Dona Glória, a Dona Sarita está aí em baixo, veio visitar a senhora. A enfermeira, delicadamente, vestiu o “peignoir” na patroa, penteou-a, ajudou-a a sair do quarto e a descer os degraus. Sarita, efusiva, sorridente, estava estacionada ao pé da escada, em sua cadeira de rodas, elegante em seu “tailleur”, com suas pernas cortadas na altura dos joelhos, à mostra. No meio da escada, Glorinha, ao avistar a amiga cotó, reconheceu-a, estancou, segurou o corrimão, e disparou: – Sarita, Sarita, não combinou, não combinou! Cruzes! Por favor, coloque de volta as suas pernas, porque este seu “tailleur”, divino, fica horrível sem elas.
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Por Ucho Ribeiro – 22/10/2018 08:39:25 |
CODINOME
Numa viagem de trem pra Montes Claros, nos idos de 50, um experiente representante boticário, há muito conhecido por Zé das Pílulas, alertava o seu novo e sisudo parceiro de propagandas farmacêuticas: – Colega, com o povo do sertão é bom você tomar cuidado. Difícil é um visitante sair dessa terrinha sem ganhar um apelido. Fonseca, sistemático, já sabedor dos tremendos apelidos que lá existiam, tais como, Manoel Quatrocentos, Dô Meu Fã, Bem-Pau-Véi, Quinhento Pro Cadáver, Alalaô, ô, ô, ô, ô, ô, ô!, Mói de Ferro, Monzeca e mais centenas de outros, prometeu que não iria carregar alcunha alguma. Amuado, apostou com o parceiro que ficaria na cidade, faria as visitas aos médicos e retornaria a Belo horizonte com o seu nome, Antenor Fonseca, impecável. Chegou calado no hotel São José, em frente à praça Coronel, não deu papo ao recepcionista, preencheu, em silêncio, a ficha de hóspede, pegou a chave e instalou-se num quarto no último andar. Para não dar motivo a falatórios e manter a discrição, determinou que deixassem suas refeições à porta do quarto, a fim de evitar contato com algum metido a engraçadinho. Metódico e curioso, a toda hora abria a janelinha do seu minúsculo quarto, punha a cabeça pra fora, espiava a praça, de um lado e de outro, via o movimento e fechava-a em seguida. Passados os quatro dias de visitas programadas, satisfeito por não ter dado papo a desaforados e certo de que não carregaria nenhum apelido daquela poeirenta cidade, resolveu ir até a praça para engraxar os sapatos, pois, logo mais tarde, pegaria o trem de volta pra Belo Horizonte. Deu sua ultima espiadinha pela janela e desceu. Ao sentar-se na cadeira, ouviu do engraxate, sorridente: – Graxa e lustro, né, seu “Cuco”? Já estava apelidado e mal sabia. |
Por Ucho Ribeiro – 8/11/2016 10:54:47 |
HELOISA
Capuletos versus Montecchios, Chimangos X Maragatos, Cascudos X Chimangos, Rua de Cima X Rua de Baixo. A história registra, há milênios, que a luta pelo poder sempre foi árdua e tribal. Só na teoria e nos palanques é que o político diz que vai governar para todos, sem ver as cores partidárias. Na prática, conquistado o poder, no voto ou no tapa, o governante administra para os seus e aplica os severos rigores da lei aos rivais. Passa a cheirar pra uns e catingar pra outros. Antigamente, a rivalidade era explícita, os correligionários viviam amontoados, apartados dos adversários. Em várias cidades o afastamento era escancarado, percebia-se uma linha divisória entre as facções. Cada um no seu canto, no seu território – ninguém ciscava em terreiro alheio. Os mais velhos ruminavam com baba grossa aquela malquerença. Mal-mal cumprimentavam os contras. Convívio, de jeito nenhum. Negócios, muito menos, mesmo pra levar grande vantagem. Namoro e casamento, nem pensar. Havia até aquela máxima: “Tome cuidado com os amigos, porque são eles que comem as muié da gente. Os adversários nem têm como chegá perto”. Desde muito cedo a meninada absorvia aquelas cismas e aversões pelos rivais. Moleque que marcasse bobeira e passasse pelo terreno alheio, apanhava. Os meninos, quando saiam do bairro ou da sua região, andavam em bando, em trincas, para evitar sovas. Na maior parte do tempo permaneciam nas suas ruas, nos seus guetos, brincando entre si e tramando alguma desforra contra os fidumas do lado oposto. No mais, a vida seguia, cotidianamente, arrastadamente, com cada cardume em sua lagoa. Festas, atos cívicos, carnaval, dias santos, tudo era celebrado em separado e competitivamente. Bandinha de cá, bandinha de lá. Santo devoto de cá, padroeiro de acolá. Água e óleo. Não se misturavam. Até os médicos tinham a sua clientela restrita a seu grupo político. Não atendiam pacientes da outra facção, pois estes jamais o procurariam. Se o cardiologista era do outro lado, o cardíaco tinha que se virar com os seus médicos. Se a turma de cá não tivesse obstetra, que as mulheres procurassem uma parteira amiga para aparar o seu bebê. Em certa cidade havia um prefeito, Agenor Alvino, casado há alguns anos com uma bela e simpática senhora, Dona Maria Heloisa, que não conseguia ter filhos. O casal tentava, tentava, e nada. Todo mês era aquela expectativa para a boa nova, mas sempre sobrevinha a regra e, consequentemente, a decepção. Com o tempo, no presumível período menstrual da primeira-dama, os correligionários, principalmente as mulheres, passaram a intensificar suas visitas à casa do prefeito. Acompanhavam, a par e passo, a “regra” de Dona Heloisa. “Veio? Atrasou?” Quando informados de qualquer retardo, era aquele alvoroço e vivas. As correligionárias se desdobravam para adular a madame e presentear o futuro herdeiro. Era uma romaria para chás, cafés e entrega de presentes: sapatinhos, babadorezinhos, vira-mantas, cueiros e chupetinhas para o futuro bebê. A alegria de Maria Heloisa durava pouco, pois o sonho da maternidade se esvaia em sangue. Novenas e mais novenas se sucediam, muitas delas compartilhadas por metade da cidade. Dona Maria Heloisa já estava irritada com tanto puxa-saquismo, bajulação, sugestões de remédios caseiros e inúmeras simpatias milagrosas com as quais as partidárias amigas a sufocavam. Resolveu, então, se fechar, não tocar mais no assunto e dar um tempo às visitas. Era muito tumulto e seguidas desilusões. Manter-se-ia reservada, apenas com sua solitária novena para Sant’Ana, de quem passou a ser fervorosa devota. Passaram-se meses até o final da novena, quando então veio a boa nova: a menstruação não chegou. Será? Feliz, mas cabreira, Dona Heloisa permaneceu calada. Não abriu o bico para o marido e nem para a melhor amiga. Não queria criar falsa expectativa e decepcionar novamente. Esperou alguns dias e nada. Nadica de menstruação. Esperou mais uns dias e neca de sangue. Será? Será que finalmente Agenor e eu teremos nosso herdeiro? Ó, benção! Obrigada, minha Senhora de Sant’Ana! Aquele milagre tinha que ser guardado a sete chaves. Tinha que ser mantido em segredo até a plena confirmação. Mas como iria saber ao certo da gravidez? Uma certeza lhe ocorreu: se comunicasse ao seu médico e compadre, no mesmo dia a notícia se disseminaria como fogo em palha nas hostes amigas. Depois de muito matutar, só vislumbrou uma saída: consultar discretamente o doutor Saulo Salgado, o único ginecologista e obstetra da mulherada da banda de lá, embora fosse ele o líder da oposição e o maior adversário do seu marido. Dr. Saulo talvez desconhecesse toda a pregressa história de suas tentativas e fracassos para alcançar a gravidez e não havia necessidade de abrir o bico e contar a sua prenhez positiva ou negativa. Decidida, esperou o melhor momento e ligou para o médico: – … Dr. Saulo, um médico arguto nas asperezas da vida, ainda que experiente nas vicissitudes humanas, ficou encucado ao desligar o telefone: Nem mesmo o marido pode saber? No dia e hora marcados surge Dona Heloisa. Trazia a cabeça e o pescoço envoltos num sombrio lenço e enormes óculos escuros lhe tapavam toda a cara. Ela entrou no consultório em passo rápido como estivesse fugindo de algo ou de alguém. Doutor Saulo, sereno e resolvido, a recebeu formalmente, dirigiu-a sem circunlóquios para a sala de exames e lhe pediu para deitar na cama ginecológica. Isto feito, cobriu-a com meio lençol e iniciou o procedimento. Passados uns longos e ansiosos minutos, Dona Heloisa, curvando-se um pouco de lado para avistar o médico, perguntou-lhe: – E então, Dr. Saulo? Eu estou grávida? |
Por Ucho Ribeiro – 31/10/2016 20:59:04 |
PLOC! PLUC! VAPT-VUPT! Joaquim tinha uma quitanda sortida e colorida. Vendia de tudo, peixes, hortaliças, castanhas, frutas, flores e temperos. Há duas décadas estava sedimentado naquele comércio, originado por seus pais portugueses, que ali tinham montado uma banca desde a vinda deles da província de Trás-os-Montes. A clientela era fiel e amistosa. O trança-trança era enorme e sempre havia rotativas turminhas que por lá passavam pra saber das novas e trocar fuxicos. Um burburinho só. As mulheres surgiam matutinamente para compras. Saracoteavam pelas bancas e debulhavam os assuntos da cidade e das novelas. Já os homens apareciam ao final da tarde pra quebrar uma e falar das últimas do futebol. Alojavam-se nos bancos e caixotes ao fundo da venda, debaixo das gaiolas dos passarinhos por ali dependuradas. A rixa entre atleticanos e cruzeirenses era calorosa, porém, respeitosa. O acatado Joaquim, ardoroso vascaíno, conhecido à boca pequena por Quincas Munheca, devido à sua aguda pão-durice, não dava palpite sobre os times alheios e nem permitia que as paixões clubistas se exacerbassem. O campo era neutro. Cruzmaltino igual a ele só o inveterado freguês, dr. Figueira, patrício, urologista formado no Rio de Janeiro no começo dos anos 50, época do Expresso da Vitória. Com acentuado sotaque português, repetia num carrilhão aquele timaço: Barbosa; Wilson e Rafagnelli; Ely, Danilo e Jorge; Djalma, Maneca, Ademir, Friaça e Lelé. O quitandeiro Joaquim chegava a babar ao ouvir aquela melodia de craques. Sem parar o que estava fazendo, apontava com o queixo a parede com a flâmula do tricampeonato e a foto do escrete publicada no Jornal dos Sports. De 1945 até 1952, o Vasco foi o rei do Rio, do Brasil e da América (em 1948) com um esquadrão avassalador, habilidoso, ligeiro e letal no ataque. Certa quarta-feira, os antecipados jogos do brasileirão, atraíram mais cedo os fregueses para o lar. A quitanda ficou vazia, sem barulho, e restaram na prosa apenas os dois vascaínos. Papo vai, papo vem, Joaquim interrompeu a descontraída conversa para tirar a água do joelho e demorou. Na volta, perdido o embalo do assunto, o dr. Figueira, perguntou-lhe: – Joaquim, tu estás com dificuldade para urinar? Joaquim foi dormir cabreiro, mas, antes, confessou à patroa a receosa conversa que tivera momentos antes. – Mulher, o dr. Figueira disse que está preocupado com a minha apertura em urinar e quer me examinar a próstata. -É, sei não. Não é o teu… O quitandeiro acordou grilado. Logo mais à tarde iria enfrentar aquele calvário. As horas não passavam e ele só se lembrava das mãos do doutor. Pra quê mãos tão grandes? E aqueles exagerados dedos? Mãos de borracheiro, dedos de graxeiro, de tratorista. Melhor desistir. Mas desistir como, se a economia da consulta já ajudaria no pagamento da faculdade de Inês Maria, sua amada filha? Mesmo contrariado, o jeito era seguir pro matadouro. Por volta das 13h30, após se esforçar no vaso e tomar um higiênico banho, subiu a rua, calado e cabisbaixo, em direção ao ambulatório. Ignorava os cumprimentos dos conhecidos. Estava compenetrado, a imaginar a cena prestes a enfrentar. Ao chegar ao posto de saúde, procurou uma enfermeira e falou baixinho, acanhado: – Eu sou o Joaquim, o dr. Figueira pediu-me para vir até aqui para… A enfermeira pôs a mão no seu ombro e o direcionou até uma sala toda azulejada, branca, com pouquíssimos móveis. Tinha basicamente uma cama, um cabide para pendurar a roupa e uma mesa, de aproximadamente um metro cúbico, com uma manivela ao lado. Tonha, a enfermeira, pediu a Joaquim para tirar toda a roupa e ficou esperando. Ele, acabrunhado, ficou quieto, até que a ficha caiu. – Aqui, agora? Na sua frente? Quincas, miúdo, mais encolhido que maracujá de gaveta, ficou de costas e começou a tirar a camisa, a calça… – Tire a cueca também! Acabrunhado, Quincas, lentamente, tirou sua cueca e a pendurou no cabide. – Ah! Pelo visto teremos que fazer uma limpa no seu traseiro. Tem cabelo demais. Enquanto o doutor não chega, vamos barbear este bumbum peludo. Tonha vestiu no Joaquim uma camisola branca, no melhor estilo Tiradentes, que só lhe tampava a frente, com tiras para amarrar atrás, e o deitou pela metade sobre o mesa quadrada. Ele ficou de pé, mas curvado, com a barriga, o peito e a cabeça debruçados sobre a parte de cima do móvel. A cada manivelada dada pela enfermeira, a bunda do Joaquim ia se suspendendo e ficando cada vez mais empinada, à mostra. Elevou o traseiro até que Quincas ficou na ponta dos pés, abatido, sobre a mesa do exame, na posição genu-peitoral. Com maestria Tonha tesourou aquela cabeleira até dar-lhe um desbaste bom; depois ensaboou aquilo tudo e barbeou com esmero aquela bunda e a região perianal. As nádegas do Joaquim ficaram iguais a uma garrafa, lisas, lisas, reluzentes, embora as rubras bochechas faciais do Quincas escancarassem a sua mais profunda vergonha. Não demorou muito e o dr. Figueira entrou na sala, despachado: – Como é, Joaquim, pronto para o exame? A Tonha te tratou bem? Pelo visto ela fez um belo acero? Bunda de patrício é sempre cabeluda, denuncia o sangue lusitano. Pois bem, tinha me esquecido que hoje é aula prática dos meus alunos de urologia. Fique à vontade, não se acanhe, são todos quase médicos. Incontinente, abriu a porta e entraram 13 estudantes de medicina, todos de avental, com luvas e o dedo do meio ereto, cheios de disposição para aprender. Joaquim, ao olhar desconfiado, de menesgueio, deparou com aqueles rapazes e moças, uns conhecidos, alguns fregueses, outros filhos de seus amigos e umas três meninas que eram unha e carne com a sua filha Inês Maria. – Olá, Seu Joaquim. O prostrado paciente, naquela situação vexatória, balançou a cabeça timidamente saudando todos. Sem perda de tempo, o dr. Figueira breou com vaselina o fiofó do amigo e iniciou as suas explicações: – Caros alunos, não se esqueçam, o dedo a ser utilizado deverá estar bem lubrificado para uma introdução fácil, suave, e que não cause mal-estar ao paciente. Devemos, ao introduzir o dedo, afastar as nádegas, franquear docemente o esfíncter anal, procurando incomodar o mínimo possível o paciente. Prestem atenção! Ploc! Lá se foi a inocência do Joaquim. A partir de agora seria o que Deus quisesse. – Ao toque vamos examinar cuidadosamente a mucosa retal, a próstata, as vesículas seminais, a uretra posterior, o trigono e o fundo vesical, a extremidade inferior do ureter e o canal deferente. Tente, então, Lucas, dê o toque. Pluc! Isto, sinta agora as características da mucosa retal e também as laterais, apalpe a parede anterior do reto, indo de baixo para cima e descreva o toque. Só assim, você poderá fazer o seu diagnóstico. – Agora é tua vez, Alice, vamos lá! Contorcendo-se e olhando para trás, envergonhado, o pai de Inês Maria respondeu: – Pois não, minha filha, fique à vontade. O dr. Figueira voltou a explicar: – Preste atenção, Alice, a próstata está situada a 4 ou 5 cms do orifício anal. O teu dedo tem que explorá-la, atingí-la em todo o seu contorno. Saiba que a próstata normal é indolor, porém a do Joaquim está um pouco inchada, motivo pelo qual ele está urinando com dificuldade. Pluuc! E tome dedadas, pluuc, pluc, e mais dedadas, fluc, fluuc, de Marcelo, de Sérgio, de Cecília, de Jéssica, de Daniel e de outros tantos. Seu Joaquim perdeu as contas de quantos medicuzinhos o conheceram profundamente. Por fim, o dr. Figueira tranquilizou o pobre Joaquim: – Patrício, fique tranquilo, tua próstata está ligeiramente aumentada, mas com um remedinho poderemos controlá-la e tu voltarás a verter água divinamente. A Tonha aproveitou a posição genu-peitoral do Joaquim, limpou a sua bunda toda breada de vaselina e despertou-o do angustiante transe: – Tudo pronto! C`est fini! Pode vestir a roupa! Tá liberado! O pacato Joaquim, antes de vestir as calças, de pernas bambas, sem saber o que dizer, humildemente, balbuciou: – Vocês todos estão servidos, meus jovens, ficou faltando alguém? – Não! Não, a aula já terminou. – Viste? Foi um vapt-vupt, um incomodozinho e já passou, arrematou o dr. Figueira. De volta pra casa, murcho, com vontade de chorar, o Quincas resmungou: – Ora, pois! Consulta barata, uma ova! |
Por Ucho Ribeiro – 13/10/2016 13:28:44 |
MIRABELICES
Zé de Gerônimo, quando jovem, morava na pacata Mirabela, onde nada acontecia. O dia a dia era ir para o colégio, assistir as aulas, voltar pra casa, almoçar, esperar passar o mormaço e no final da tarde ir para o campo bater uma bolinha com os amigos. Na verdade, treinar sério e puxado, pois o time da cidade queria manter a árdua e longa invencibilidade de quase um ano. Mas, num janeiro, em plenas férias escolares, eis que chegou à pacata cidade um ônibus todo modernoso, placa do Rio de Janeiro, com uma faixa pregada na lateral:“Projeto Rondon – Integrar Para Não Entregar.” Ao abrir suas portas, exceto o gordo motorista, desceu uma juventude jamais vista em Mirabela. Linda, maravilhosa, bronzeada, sorridente e de uma fala mansa diferente, cheia de “esses”. Ipanema veio parar nas terras de São Sebastião. Eram estudantes cariocas de medicina, enfermagem, fisioterapia e afins. Se instalaram na pensão de Dona Zefa e, no dia seguinte, monitorados por 2 médicos professores, já estavam em campo, consultando, aferindo pressão, colhendo sangue, urina, fezes e vacinando a população. A cidade virou um fervedouro. Os velhos nunca tiveram uma assistência médica daquela e os jovens mirabelinos nunca viram tanta moça bonita. Estes não conseguiam nem responder as perguntas. Na anamnese, ficavam mudos, babando com tanta beleza. Era uma tolemice sem fim. Zé e seus amigos, acanhados,não trocavam muitas palavras com as cariocas, mas acompanhavam-nas à meia distância por todos os cantos. Eram uma presteza a toda prova. Um adulo sem fim. Colhiam mangas e pinhas nos quintais, pediam as avós para preparem fornadas de biscoitos, doces e levavam tudo pra pensão das meninas do Rondon. Menos pequi, porque elas detestaram. Na coleta do sangue, eles deixavam as inexperientes estudantes furarem os seus braços quantas vezes quisessem. Todas as meninas eram bonitas, mas tinha uma, Tatiana, que era uma deusa, uma princesa. Uma beleza nunca dantes vista e imaginada. A formosura era tamanha que platônicas paixões floresceram, mas nenhum amor foi declarado. Passado o mês, uma grande festa, com baile e banda, foi marcada para o sábado,véspera da despedida do projeto Rondon. Toda a cidade se alvoroçou para preparar uma festança em gratidão aos bons serviços prestados pela estudantada carioca.A Tatiana, percebendo o zelo e o carinho com que a população organizava os festejos, prometeu que dançaria no baile com o garoto de Mirabela que fizesse um gol no clássico, de sábado à tarde, entre os jovens craques da cidade contra o rival escrete de Japonvá.A promessa foi a gota d’água pra imperar a desarmonia no time de futebol. Ninguém queria ficar na reserva, nem no gol e, muito menos, jogar na defesa. Foi um upa para montar e escalar o time. Os jogadores entraram em campo, sem conversar, nada do grito de guerra“um por todos e todos por um”, dali em diante era “cada um cuida de si, murici.”. Logo na saída da bola o time todo partiu para o ataque, ninguém se preocupou em defender. Resultado: Levaram de onze. Um vexame nunca visto. A valia foi que nos minutos finais, por um descuido da defesa do Japonvá, o Zé de Gerônimo chutou desesperadamente a bola para o gol e ela entrou. Final 11 x 1. Em todo aquele vexame, a glória foi de Zé. Faturou a dança com a princesa Tatiana e a oportunidade de declarar a sua paixão. À noite, tomou um banho demorado, se esfregou todo, escovou os dentes três vezes, se vestiu, se perfumou,se perfumou de novo, foi a privada mais de duas vezes, tomou coragem e foi com a roupa domingueira, exalando naftalina,pra porta da pensão de Dona Zefa, esperar a mulher mais linda do mundo. Ao chegar lá, deparou com uma multidão a espera das estudantes para seguirem cortejo até o clube da cidade. O coração de Zé de Gerônimo estava para sair pela boca de tensão e emoção. Às dez horas, as participantes do projeto deixaram a pensão em direção ao baile, e Zé num ato de coragem se postou ao lado de Tatiana que, ao perceber sua presença,delicadamente pegou no seu queixo e disse: – Muito bem, meu artilheiro. As pernas de Zé amoleceram, mas,mesmo vexado, aguentou firme até o clube. Lá, sentou-se à mesa com as cariocas, porém não abriu a boca. Ao som dos hits parades da época, tomou um cuba libre, imitando-as, e aguardou o grande momento em que dançaria com Tatiana. Seria a derradeira e única oportunidade para declarar todo o seu verdadeiro amor. Passado um tempo, a banda criou um suspense com piruetas sonoras, suspendeu a música e passou o microfone para o prefeito. A banda,de volta com seus instrumentos e depois de um elucubrado preâmbulo, passou a tocar a música “Meu Primeiro Amor”, Zé começou a dançar com Tatiana e o clube de pé aplaudiu sem parar aquela apoteose. O único momento que conseguiu dizer alguma coisa para ela, foi na despedida,já na porta da pensão, quando,acanhadamente, indagou: – Posso te mandar uma carta? Não dormiu. Passou a noite rabiscando cadernos, na tentativa de por no papel uma declaração de amor e saber o que ela achava dele. Depois de muitos burriscos, resumiu nestas palavras: “Tatiana, detentora do meu coração, em você eu encontrei a razão do meu viver. O que você encontrou em mim?”. Passaram-se dias, mais de duas semanas. O Zé de Gerônimo, ansioso, no aguardo da resposta de sua missiva, ia todo dia até a oficina dos correios, bem na hora da entrega da correspondência pela jardineira.Fez às contas,sete dias pra ir e sete dias pra voltar, a carta de Tatiana deve estar pra chegar. E chegou. Ao abrir, tomou um choque. Levou um tempo para entender. Mas decifrou tudo. Tudinho. Não podia acreditar naquilo. E saiu numa carreira alegre e saltitante para mostrar a carta de Tatiana aos seus amigos que o estavam esperando no campo para mais um treino. De longe, aos gritos, pulava e mostrava com a mão levantada a carta do seu amor. O pessoal começou a gargalhar e caçoar de Zé. Chegaram a rolar na grama de tanto rir.No que Zé de Gerônimo, todo orgulhoso, respondeu: – Cês são uns bestas, em mim, Tatiana só encontrou vermes estrangeiros. Em vocês, ela só vai encontrá lumbriga! Esta história é do finado amigo e escritor José Luiz Rodrigues. Foi-me contada de corpo presente na promessa de me presentar com o seu livro “Verme Estrangeiro”, pois eu tinha reclamado que não o encontrava nas livrarias – edição esgotada. Ouvi com agrado e dei boas gargalhadas. Fique com Deus, Zé! |
Por Ucho Ribeiro – 26/9/2016 09:23:41 |
SEXÓLOGA DE ARAQUE
Eu devia ter uns 10 anos, Pat e Fred eram dois e um ano mais velhos, e os outros quatro irmãos menores, Marquim, Mônica, Paulim e Márcia, vinham numa escadinha com degraus de um ano e três meses de diferença. Éramos sete. A oitava cria, Bertha, a rapa do tacho, só viria ao mundo dois anos depois, em 67. A casa era um alvoroço, correria e estripulia o dia inteiro. Meninos por todos os lados, os de casa e mais a molecada vizinha. Quando a aprontação estava demais, mamãe perdia a paciência, dava um basta, a garotada saía de fininho, ela então nos colocava de castigo ou nos dava uma sova. Na verdade sovinha, pois a dúzia de bolos nas mãos era aplicada com uma indolor sandália de borracha. De vez em quando, para amainar os agitos, ela nos levava para a sala e lia algum livro. Era a maneira de ficarmos sossegados. Lembro-me das poesias de Manoel Bandeira, algumas sensuais. Eu achava estranho mamãe ler aquelas coisas indecentes: Aquela leitura sugestiva e caliente despertava a libido dos machinhos, direcionando-os para o banheiro. Ali, a contumaz demora fazia com que mamãe batesse à porta pedindo pressa. Muitas vezes pedia pra gente tomar banho de porta aberta, com o que Marão não concordava e dizia: Por seu turno, Marão se esquivava, tirava o corpo fora, alegava que não tinha tempo, nem jeito, e que mamãe mesmo reunisse a tchurma e desse uma aula. Pois bem, lá foi a coitada da Maria Jacy comprar livros, enciclopédia, tomar revistas emprestadas, ler tudo sobre o assunto, estudar, pesquisar e quando sentiu-se preparada, chamou a ninhada para uma conversa séria, legal e democrática. A data foi marcada com antecedência e a hora para depois do jantar. No dia aprazado, a molecada se empoleirou nos sofás e se esparramou pelo chão da biblioteca, barriga pra baixo, mão segurando o queixo, olhos brilhando e a cabeça a mil. Mamãe sentou-se bem à frente da gente, num sofá vermelho, cercada de sabedoria por todos os lados, mais a Barsa, livros, revistas e começou a aula que preparara com todo o zelo e tensão. Mesmo com certo gaguejo, explicou tudo, tudinho, ci-en-ti-fi-ca-men-te: sementinhas pra lá, óvulos pra cá, muito amor do papai e da mamãe, patati-patatá. Histórias de papai do céu e cegonhas bicudas não entraram na conversa. Deu para perceber que mamãe terminou a explanação suada, mas aliviada por ter cumprido a missão. A batalha, porém, estava apenas começando. Ao perguntar aos queridos anjinhos se haviam compreendido tudo, se queriam fazer alguma pergunta, Linka foi logo confessando: Dona Jacy, então, deu uma nova explicação científica para Paulim. A professora Jacy pediu silêncio e, em seguida, Márcia quis saber pra que servia modess. Mamãe foi ao quarto dela, apanhou um absorvente, vestiu-o por cima da roupa, explicou, explicou tudo bonitinho, ci-en-ti-fi-ca-men-te. Ao terminar, eu sussurrei pra Fred: Para encerrar, com mamãe já exausta, balangandã, Quincas levantou o dedo para fazer sua pergunta. Nocaute. A professora arriou no sofá vermelho. Rateou, rateou, tentou explicar, gaguejou, os livros e a enciclopédia não ajudavam em nada, e Dona Jacy jogou a toalha: Obs: Escrevi esta crônica em homenagem aos 87 anos do meu umbigo, que aniversaria hoje, 23/09/2016. À bênção e parabéns minha mãe. |
Por Ucho Ribeiro – 19/9/2016 16:38:55 |
ETCÉTERA E TAL.
Tio Maurício que me contou o causo, mas não me confidenciou o sobrenome do personagem. Disse apenas que era um aprendiz de alfaiate, conhecido por Dorival, Dô para os íntimos. Morava nos Morrinhos e trabalhava numa alfaiataria da rua XV. Nos intervalos do trabalho ia para o bar da esquina, o Boca de Pito, contar potocas e revelar seu sonho de ser um renomado costureiro. – Ainda vou ser famoso, vou fazer é roupa pra grã fino lá em São Paulo, cês vão ver! Tanto disse e repetiu, que um dia fez as malas, passou na casa da sua noiva Gracinha, fez juras de amor, prometeu que retornaria em breve com o certificado de alfaiate e as passagens pra levá-la casada pra cidade grande. Dito e feito. Passado pouco mais de um ano, eis que chega à estação de trem de Montes Claros, Dorival, nos trinques. Terno azul-escuro estalando, com um corte diferente, modernoso, lenço vermelho dobrado no bolsinho do paletó, camisa listrada, calça vincada e sapato lustrado, bicolor, com ponteira de metal. As malas novíssimas de couro e com fechadura dourada. Os funcionários e passageiros, na plataforma de desembarque, contemplaram aquela elegância toda, mas não atinaram que a figura era um cidadão montesclarense repaginado. Apenas, um menino, vizinho e morador da Ovídio de Abreu, o identificou e perguntou: Dorival, formalmente, respondeu: Ao descer a escada da estação, o garoto desconfiado já mudou o tratamento: Seguiram pela Barão do Rio Branco e foram descendo, no que o Dorival perguntou: Ao chegar ao Hotel, o alfaiate perguntou ao menino: – Guri, você sabe onde mora Dona Clarice, nos Morrinhos? etecetera e tal. Dando uma gorjeta graúda, lhe ordenou: – Pois bem, vá lá e diga a ela que vou tomar um banho, repousar um pouco, etcétera e tal, e que mais tarde passarei por lá, etcétera e tal, para a gente sair, etcétera e tal. O menino partiu numa carreira e rapidinho estava na porta da casa da noiva, de onde gritou: Nisso, apareceu Dona Clarice e perguntou: – É pra avisar pra Gracinha que o seu Dorival chegô, etcétera e tal, que tá no hotel São José, etcétera e tal, que vai tomá um banho e descansá, etcétera e tal, e depois vai passá aqui pra buscá-la, etcétera e tal, e que eles vão sair, etcétera e tal. Dona Clarice ouviu aquilo tudo, estranhou o palavreado e disse: O garoto virou e, batendo a mão esquerda aberta na outra fechada, sentenciou: – Sei não, dona Clarice, mas eu acho que é, ó: Top! Top! Top… |
Por Ucho Ribeiro – 6/9/2016 16:11:33 |
CORONEL GEORGINO
Quando menino, eu era vizinho do Cel. Georgino Jorge de Souza. Morávamos na baixada da Santa Casa, contrapostos na esquina da Irmã Beata com Luiz Pires. Ruas de paralelepípedos, poucos carros, casas sem muros, sem antenas, criançada solta. No finalzinho do dia os vizinhos se encontravam para uma fresca, um dedo de prosa. Eventualmente o Coronel aparecia lá pelas oito horas da noite e tomava lugar no murinho onde a meninada se empoleirava. Ao chegar, a algazarra diminuía, o tom da falação abrandava e aos poucos todos se calavam para ouvir os causos daquele bravo e respeitável homem de voz rouca e pausada. Eram histórias do tempo do onça, quando não existiam luz elétrica, nem automóvel. O Coronel sempre dava corda as nossas conversas até pegar uma deixa e introduzir sua história: – No final dos anos quarenta, quando fui responsável pelo censo do efetivo da polícia militar na região do Vale do Rio Doce e do Mucuri, rodei milhares de quilômetros em lombo de burro, fazendo o levantamento dos policiais cadastrados na polícia mineira. Chegava às cidades e ia direto à delegacia à procura do soldado ou dos soldados que haviam sido designados para aquela unidade. Comum era encontrar ninguém, a delegacia às moscas. O policial podia estar à-toa em casa ou num buteco ou mesmo encangado na fazenda de algum chefe político do município ou até mesmo pescando. Uns não tinham mais uniformes, muito menos munição, alguns nem arma, outros desleixados, gordos, não cabiam mais nas suas fardas e a renunciavam, quantos não amasiaram com prostitutas e cachaça, enquanto tantos não foram sequer encontrados. Contou que certa vez, ao chegar numa cidade mucuriana, deparou com uma população arredia, amedrontada, com pavor de polícia. O Cabo Tibúrcio, destacado para lá, havia estabelecido uma verdadeira tirania. Por qualquer motivo prendia e humilhava os cidadãos, até mesmo os considerados dóceis e de boa índole. Os com o passado obscuro, ou que manifestassem alguma intrepidez ao serem admoestados, eram presos e espancados. Muitas famílias tiveram membros sovados e humilhados. A cidade estava sob a chibata do Cabo. Silenciosa e revoltada. Georgino, à época capitão, relatou o caso ao comando da capital mineira e foi autorizado a resolver a questão com severidade exemplar. Imediatamente prendeu o cabo por 30 dias por abuso de poder. O policial ficou uma arara, puto da vida, mas o Capitão Georgino foi glorificado. A cidade o pôs em andor, passou a adulá-lo e a convidá-lo para almoços e festas. Enquanto cobria o tempo da prisão do cabo e aguardava a chegada de um novo praça para a jurisdição, o Capitão foi desfrutando bajulos e conhecendo o pacato e religioso povo da cidade, que tinha retomado a alegria. Havia chegado recentemente na paróquia um padre jovem, moderno, cheio de idéias novas, com práticas e ações que agitavam e mobilizavam a juventude e dissolviam as carranquices e teias de aranhas dos velhos. Criou um coral, uma banda de música, as filhas de Maria, os encontros de casais e um grupo de teatro para apresentar peças religiosas. Como estava próxima a Semana Santa, a fervorosa comunidade cristã, sob a tutela do Padre Estevão, entrou em ebulição com a suntuosidade que seria encenada a Paixão de Cristo. Os fiéis, de mamando a caducando, fariam parte da procissão. Havia papel para todos, de Jesus Cristim a São José, passando pelas Marias Madalenas, João Batista, Barrabás, Herodes, Ana e família. A única dificuldade era arranjar um cidadão para fazer o soldado que açoitaria Cristo na procissão dos passos. Ninguém queria fazer o personagem que golpearia Jesus arrastando a cruz. Cruz Credo! Bater em Cristo seria uma urucubaca pra o resto da vida! O Capitão Georgino, em um dos almoços em sua homenagem, sabedor da falta de viv`alma pra fazer o cruel romano, encontrou a solução. Foi até o Cabo Tibúrcio e o designou à missão, com a promessa de que se tudo corresse no de acordo iria reduzir sua pena. Os ensaios, sem o Cabo Tibúrcio, eram diários, os textos tomados e retomados, o trajeto e os passos muito bem definidos, as falas repassadas, as vestimentas refeitas com tecidos novos, costuradas com capricho pelas melhores profissionais. Tudo correu certinho, ensaiadinho. Nos trinques. Trouxeram até um ator de fora pra representar o Cristo. Ele, alto, forte, bonitão, chegou todo galã, metido, com todos os trililiques de artista famoso. Foi bem alojado e afeiçoado por todos. No dia do cortejo e da encenação da morte de Cristo, tudo estava enfeitado para a procissão, as ruas ganharam flores, areias e as janelas foram enfeitadas com colchas, toalhas e com o santo da devoção. O ator famoso, depois de horas de maquiagem, surgiu todo ensanguentado à base de urucum, mercúrio cromo e molho de tomate, com a espinhenta coroa presa nos longos cabelos da sua peruca, causando compaixão e dó ao emocionado público. O Capitão Georgino, com muito custo, trouxe o Cabo Tibúrcio, enraivado, vestido com uma sainha romana de couro, uma sandália de gladiador trançada até abaixo do joelho, com um chicotinho de pano, e ordenou: – Ouça bem, Cabo, você vai ter de seguir esta procissão até o final, encenando o algoz de Jesus Cristo. Vai fazer cara de mal e chicoteá-lo da forma mais convincente possível. Estamos certos? A procissão partiu e era aquela comoção ver o soldado romano chicotear o chiliquento Cristo. O ator se desmanchava em sofrimento, fingindo o maior martírio por carregar aquela cruz que parecia ter uma tonelada. A cada chicotada os fiéis vaiavam e xingavam o soldado: Na verdade, o povo aproveitava para desabafar, insultar e se vingar do Cabo Tibúrcio que tanta maldade fez. A vaia era uníssona, barulhenta e a procissão, morosa. Na primeira queda de Cristo, o badalado ator se derreteu, fingiu tão bem que as pessoas pensaram que ele havia passado realmente mal. O Tibúrcio, cansado de tantos faniquitos, chegou a parar de bater nele com aquela falsa piratinha. O Padre Estevão, prolixo, aproveitou para debulhar suas intermináveis explicações sobre aquele santificado passo, sobre o mistério da cruz. Jesus, depois de seguidas tentativas, se levantou sob a comoção dos devotos e o corso seguiu arrastado. O soldado, por não mais bater em Jesus, foi advertido pelo ríspido olhar do Capitão Georgino, cobrando mais empenho e teatralidade. A cada chicotada uma estrondosa vaia e xingos de todos os calibres: – Cumunista! Zelão! Facínero! Fio de Lampião! Ocorreram até cusparadas e insultos do tipo: – Ô Corno! Na segunda queda, deu-se o completo desmantelo de Cristo, o ator debaixo da cruz se estrebuchava, língua pra fora e o povo comovido, às lagrimas. Mas enquanto o Padre Estevão dava início aos seus longos esclarecimentos sobre aquele passo, sobre o encontro da humanidade com Deus, o Cabo saiu sorrateiramente em direção ao Bar do Zé de Chico, bem em frente. Já entrou mandando: – Zé, põe uma aí pra mim. Ao sair deparou-se com uma chibata de couro cru trançado que estava largada em cima de uma das mesas. Catou-a, jogou pro lado a piratinha faz de conta, voltou até a pinga, deu uma boa talagada, cuspiu, e mastigou com a boca torta: – Aquele chiliquento vai ver agora o que é sova. Cristo ainda estava debaixo da cruz, gemendo e se contorcendo, quando apareceu o Tibúrcio empurrando o povo e gritando enraivecido: – Agora cê vai ver o que é apanhar, fiduma! Cê fica nesses fricotes, nesse dengo sem motivo, quero ver você é debaixo desta chibata! E desferiu no desmantelado Cristo uma chibatada com toda a força que tinha. O ator despertou assustado do seu transe performático, jogou a cruz pro lado, já sob outra chicotada, e partiu enfurecido pra cima do Cabo que não parava de chibatear. Cristo e o soldado romano trançaram-se em surdões e sopapos. Pancadaria pesada. Palavrão de tudo quanto é tipo e qualidade, cada um mais inapropriado que outro para aquela celebração religiosa. A sorte foi o severo Capitão Georgino estar por perto e agir, com a sua força moral, enérgico e destemidamente, separando aquelas imensas onças raivosas, que estavam a ponto de se matar. Depois de um tempo, passado o rebuliço, acalmada a multidão, o Padre Estevão ainda tenso deu prosseguimento à procissão. Até o final do cortejo, o Capitão Georgino permaneceu lado a lado dos dois brigões, apartando-os, e atento as suas rosnadas e a seus raivosos olhares, cheios de ódio e hematomas. |
Por Ucho Ribeiro – 28/7/2016 09:10:09 |
Pombinhos
Quatro anos de arrastado e vigiado namoro. Os encontros eram permitidos as quartas e sábados, impreteríveis, das oito às nove e meia da noite, sob a espreita vela da família. Em alguns domingos, Donato era convidado para os fartos almoços da sogra Marinês. Comia até pouco para não soltar a mão de Ritinha por baixo da mesa. |
Por Ucho Ribeiro – 20/6/2016 11:47:02 |
LAS BELLES DE JOUR
As aulas no Colégio São José terminavam depois das 11 horas da manhã. Quase diariamente eu descia a rua Belo Horizonte até a igrejinha e pegava a Padre Augusto, um caminho mais longo para ir para casa. O trajeto normal, mais curto, era pela D. Pedro II ou pela Dom João Pimenta, pois eu morava ao lado da Santa Casa, mas o baixo meretrício, situado num pedaço da rua Padre Augusto, me atraia magneticamente. |
Por Ucho Ribeiro – 16/6/2016 11:30:51 |
OCUPADO
Em um bom papo com Tio João Valle Maurício, ele me segredou que na rua Padre Augusto, nos anos cinqüenta, tinha uma dama discretíssima, de sangue bávaro, chamada Frieda, que atendia, reservadamente, cavalheiros recatados e abonados. Era bem frequentada, pois além de loira, tipo raro no sertão, fazia célebre peripécia que as putas habituais de Montes Claros desconheciam ou acanhavam no ofício. Ela morava bem em frente do escritório de Waldemar Tic Tac, contador metódico, que tinha por obsessão controlar tudo à sua volta. De olho no relógio, sabia o horário da chegada e saída de todos os funcionários das lojas comerciais adjacentes e fazia um verdadeiro rastreamento na rotatividade da madama. |
Por Ucho Ribeiro – 8/6/2016 10:42:36 |
STERCUS CANIS*
Em conversas tolas sobre práticas escatológicas ou excretoterapia (designações dadas a medicina popular que utiliza substâncias ou ações repugnantes ou anti-higiênicas, como fezes, urina, cera de ouvido e saliva) eu tive conhecimento da existência de um livro antiquíssimo chamado “Erário Mineral”, que é um dos primeiros tratados de medicina brasileira com os mais extravagantes conselhos e experiências de práticas médicas, escrito pelo cirurgião-barbeiro Luís Gomes Ferreira, editado em Lisboa, em 1735. O autor veio para o Brasil com a intenção de se enriquecer com a mineração. Perdido nos grotões de Minas, ao defrontar com a ignorância reinante na época e com as inúmeras doenças da população, passou a ser, empírica e obrigatoriamente, médico e cirurgião. Curioso, eu naveguei na internet e encontrei o alfarrábio no site da Scielo Livros.** Como era muito interessante, embora copioso, imprimi as partes mais bizarras e as levei para São Gonçalo do Rio Preto, onde pretendia lê-lo no final de semana ao lado do meu guru e raizeiro Irineu. Lia e sabatinava o mestre matuto sobre os absurdos e as veracidades dos conselhos seculares do cirurgião-barbeiro. No livro, o autor dizia que para acabar com alcoolismo teria que dar ao bebum um ovo de coruja mal cozido e vinho misturado com gotas de suor de cavalo. Irineu discordou e disse que a cura para cachaceiro é botar uma garrafa de cachaça no ninho de choco da galinha e depois que esta tirar os pintinhos, dar o conteúdo (fermentado durante os 21 dias) ao biriteiro. O coitado vai pôr as tripas pra fora de tanto vomitar e nunca mais vai querer tomar uma. Para os carecas havia uma receita que não falhava: raspar à navalha toda a cabeça do sujeito e bezuntá-la durante um mês com sebo de homem esquartejado. Irineu torceu a cara e disse: – Onde vamos encontrar homem esquartejado por aqui, Ucho? Seguindo a extensa leitura, o cirurgião do século XVIII dizia que a inflamação da pele em volta da unha curava-se enfiando o dedo doente no anus de uma galinha. Para a cura da malária ele recomendava que o enfermo andasse com um osso de defunto pendurado no pescoço. Irineu se calou, cabreiro e, embora atento, dedicou-se ao preparo do seu paioso. Minha leitura e os conselhos continuaram: no combate à asma, devia-se comer, diariamente, uma lesma esmagada e fervida com mel; a saliva, logo ao se levantar, antes de falar qualquer palavra, era ótima para curar feridas; as crises de asmas deveriam ser tratadas com o uso de formigas torradas com café. O epiléptico precisava beber, por uma semana, uma pinga guardada durante anos com um cordão umbilical de bebê recém-nascido. Para as hemorróidas, havia um tratamento supimpa, porém dificil de ser encarado: enfiar no anus trapos de panos encharcados em suco de limão, pimenta, cachaça e pólvora. Irineu, agoniado, protegendo o seu, inverteu a posição das pernas e disse: so faltô riscá o fósqui, cê besta! Para feridas brabas, aplicar sobre elas um sapo aberto no meio. Chá de grilo para icterícia, chá de penas de urubu para hidrofobia, chá de saco de bode para dores nos rins, chá de cocô de cachorro para tosse e sarampo… – Peraí! Interrompeu, Irineu: – Já vi falá de muitos desses tratamentos e assimpatias. Os qui eu num sei, Abel da Raiz pode dizê se já usô ou não, mas chá de bosta de cachorro, se for alvinha e ressecada, é bom mesmo pra caqueluche, sarampo e pra picada de cobra. Aí, me presenteou com um dos seus causos. Contou que, há muito tempo, aparecia nas bandas das Boleiras, antes de existir o parque do rio Preto, um marchante turco munheca, chamado Nassib, com um palavreado todo atrapalhado, que não acreditava de jeito nenhum nas simpatias e mendicâncias e fazia até chacota das crenças do povo. Arrotava que a única coisa que tinha medo era de cobra peçonhenta e por isso usava um amuleto da terra dele, azul, na forma de um olho. Segundo Irineu, a criatura tinha a mania de levantar as mãos pro céu e dizer emboladamente: “Tão me lasca!” Era só oferecer alguma coisa pra ele e o turco achava caro e dizia: “Tão me lasca!”. Eu, hoje, deduzo que na verdade ele deveria dizer “Tanrı askina!”, que em turco quer dizer “Pelo amor de Deus!” e que sonoramente parece com “Tão me lasca!” Era tão arrogante e descrente das meizinhas e crenças do Jequitinhonha que o pessoal se ajuntou para armar uma arapuca pro filho da puta. Combinaram que no dia em que alguém matasse uma cobra graúda, esta deveria ser levada para o buteco, onde Nassib, invariavelmente, depois de farto almoço, se debruçava e apagava sobre a mesa. Tram-cham. Não passou uma semana, Abel apareceu com uma jararacuçu morta imensa. Esperou só o Nassib esmorecer sobre a mesa e colou a cobra do lado dele. Nisso Chico pegou uma daquelas tábuas finas de caixotes de banana, que tem dois pequenos pregos na extremidade, e explicou: – Eu vou bater a tábua na perna do Nassib e vocês dois, com os porretes, fingirão que estão matando a cobra a pauladas. Dito e feito. Chico, pé ante pé, golpeou a tábua, com os pequenos e finos pregos, na perna de Nassib, enquanto Abel e Xisto baixaram o cacete na jararacuçu já morta, aos gritos de “Olha a Cobra, Turco!” “Cuidado!” “Afasta, Seu Nassib!” O turco deu um pulo e ficou sapateando sem saber pra onde ia ou saltava. Quando viu o tamanho da cobra, aí que sapateou bonito. Ao perceber o sangue brotando e os dois orifícios na perna, berrou: – Tão me lasca! (Tanrı askina!) O cobra me picou! Tanrı askina! O que é que eu faço, meu gente? Nisso, Chico segurou o turco com firmeza, sacolejou-o e disse: – Calma, Seu Nassib, eu vou fazer um torniquete pro veneno não espaiá pro seu corpo, mas fique aqui, quieto e deitado. Xisto, do lado, compenetrado, alertou o turco, já suando em bicas. – Relaxa, homi, enquanto o torniquete vai ataiano o veneno, Abel vai prepará o chá de bosta de cachorro. Ele é cobra criada no fazimento do chá. – Nada de cobra criada! Socorro! Me tira daqui! Tanrı askina! Num é a chá de titica de cachorro que vai me fazer viver. Onde tem uma automóvel pra me levar pra cidade? – Seu Nassib, aqui não tem carro e nem tem cavalo pra te levar a tempo pra cidade. São 10 léguas, turco! Até lá, você já foi pros quinto do inferno. Confia no homi e no chá, pois são os meios que temo e Abel já salvô uma meia dúzia de ofendido de cobras. – Prepara logo esta chá. Tanrı askina! Gritou. – Já estão acedendo o fogo, mas o chá só ficará pronto em 40 minutos. – Você está brincadeira, moço, será que vou aguentar este tempo todo? – Vai ter que aguentá, pois o chá só faz efeito se ficar 40 minutos em água fervendo. – 40 minutas? Com quarenta minutas já apodreci com o veneno. Tanrı askina! Estarei todo gangrenado. Adeus, filho de Haluk e Sarila! Será que vocês não podem adiantar a fervura? Abel, Chico e Xisto balançaram a cabeça negativamente. Nassib, então, no auge do desespero, clamou: Ô gente! Tanrı askina! Me dá logo uma pedaço desta merda seca do cachorro para eu ir roendo até que a chá fica pronta. *Stercus Canis Officinale, também chamado Album Graecum, era um medicamento popular encontrado nas farmácias antigamente, produzido a partir das fezes secas e embranquecidas de cães e de outros canídeos, inclusive do lobo Guará, e usado na forma de chá pra tratar varias enfermidades, principalmente afecções nas vias respiratórias superiores. **Scielo Livros, portal que publica e disponibiliza eletronicamente livros de caráter científico, editados, prioritariamente, por universidades. O “Erário Mineral” foi ressuscitado e republicado, no ano 2002, graças a associação da Fundação Oswaldo Cruz e com a Fundação João Pinheiro (organização Júnia Ferreira Furtado). |
Por Ucho Ribeiro – 30/5/2016 11:57:24 |
VENDA DE VALDIVINO
Dia morno na Jaíba. O sol se pôs arrastado, vermelho, deixando turvo de ferrugens o bordeado do horizonte. Foiceiros e vaqueiros, como de costume, largaram o trampo e se dirigiram à venda de Valdivino para lavar a goela e fazer a resenha do dia, na paz. De repente parou na porta da venda a Veraneio empoeirada e amassada da polícia de Itacarambi, conhecida como “Lady Laura”. O Delegado Abrantes desceu decidido, costeado por dois PM`s, ressabiados, com as mãos apertadas sobre as armas. Foi direto ao proprietário, sem rodeio: – Que lambança houve aqui, Seu Valdivino? Que abatedouro foi esse? – Calma, Seu Delegado! Num foi nada não. Senta um pouco nesse banco que eu lhe conto a história todinha. Mas se assossegue, pois de estampido assim eu posso num alembrá duns detalhe, dotô, mesmo tendo muita gente aqui que assistiu e participô da lambança, como o senhor disse… Certo é que, depois da lida, a peãozada estava toda esparramada pela venda, uns no gole, outros no truco e os de sempre contando mentira, até que Crispim de Josefa, aquele corno escurraçado do Brejo do Mutambal, ignorô, assim do nada, nadinha, meteu a mão no balcão e coiceou: – Aqui na Vila Florentina não tem homi!… O pessoal ficou ressabiado, mordido, estranhando o vomitório sem termo, aquele despautério. O chifrudo, então, voltô a relinchar: – Eu sabia, aqui não tem macho messsmo, devia tudo andar de saia… Andalécio, na sinuca, não suportou o desaforo do desafeto antigo e, sem titubear, num giro, afundou o lado grosso do taco na cabeça do Crispim de Josefa, que caiu no chão se batendo que nem galinha quando imolada. No reflexo, o junta de canga de Crispim, parceiro de foice dele lá no Brejo, conhecido por Varmir, grunhiu de lá e passô a sua afiada ferramenta de trabaio no cangote de Andalécio, que desabô pra escanteio. O companheiro de sinuca de Dalécio, de apelido Zé do Grilo, metido a valente, num solavanco arrancô sua peixeira, empurrô Varmir até as pratelêra e furou ele que nem peneira. Fuc-fuc-fuc. E isto tudo num vapt vupt, pois o filho mais graúdo de Varmir, em defesa do pai, avançô na balança da venda, pegô o maior peso, de quilo e meio, e afundô nos miolos de Zé do Grilo. Deu pra ouvir até o crec do arco da moringa. Até aí, nos conforme, briga deles e eu não queria tomá partido. Mas Ednaldo pôs fogo na fervura ao pegá a faca de retaiá porco, deixada no balcão, e partiu pra cima de Nêgo de Ramiro, meu parente afim, pro mode de coisa antiga, de muié, seu Delegado. Então começaram a misturá as coisa, a ressucitá véias mal querência, que não procedia no momento. Naquele ingranzéu, não é que Durvalino, lascador de aroeira, jararaca de espera, se irritô também e machadô uma das perna de Ednaldo? E ieu, até então sem querê tomá partido, instigado naquele redemoim de desavença, comecei a me sentir dentro da confusão. Eles soprando tição de fogueira e eu aqueçeno, né? Por precaução palpei minha peixeira, prumei ela e ajeitei a menina pr`alguma serventia anunciada. No rebuliço, a muié de Ednaldo, chamada Carmina, chegou por trás de Durvalino madeireiro, abraçou ele qui nem tamanduaçu, puxô a cabeça do coitado pelos cabelo e degolô o vivente num corte só. Sangue espirrô que nem esguicho de égua, tintando o chão de minha venda. Aí não teve jeito, seu Delegado, eu e uns chegado, todo mundo de siso, já com a baba grossa dispindurada, se arrevoltemo. Lambança até certo ponto, né, dotô? – Hum! Mas e aí, Seu Valdivino? -Aí nós arretemo e tomemo partido. Foi quando a briga começou. |
Por Ucho Ribeiro – 30/3/2016 10:40:49 |
O SILÊNCIO VERGONHOSO DA COPASA E A OMISSÃO DA SECRETARIA DO MEIO AMBIENTE
Em concordância com o Milton da mensagem nº 81423, nunca é demais repetir que o insuportável mau cheiro empesta há muito os bairros Santos Reis, Jardim Brasil, Renascença, Edgar Pereira, Alice Maia. Infecta inclusive o Todos Santos II, passa pela Nova Morada e vai até o Eldorado. Catinga das mais fedorentas. E isto já tem anos e mais anos. Fedentina generalizada. A Secretaria do Meio Ambiente sempre se silenciou. Surda e muda. A COPASA por sua vez, ignora o esperneio e a gritaria da população. Continua calada, omissa, e não se defende quando a sua Estação de Tratamento de Esgoto é acusada de emitir o putrefato cheiro. Uns culpam a ETE, outros acusam as descargas residuais das fábricas do distrito industrial emitidas na calada da noite ou nos finais de semana, quando não há fiscalização ambiental. Se é que existe? A Secretaria de Meio Ambiente deveria se manifestar de forma clara, objetiva e informar categoricamente de onde vem o fedor. Declarar se já aplicou alguma multa ou se já estabeleceu prazo para findar o mau cheiro. |
Por Ucho Ribeiro – 14/3/2016 19:30:01 |
UM DOMINGO PREOCUPANTE Estive nas manifestações. Tudo muito colorido, bonito. Muita gente. O dia estava radiante. Era um amarelo só. Nunca havia visto tantas pessoas espontaneamente protestando contra um governo nas ruas de Montes Claros. Chavões gritados a pleno pulmões contra Lula, Dilma e a corrupção. Que eu me lembre de multidão assim, só nos showmícios das décadas de 80 e 90, quando os candidatos, pra encher a praça, traziam cantores sertanejos do tipo chitãozinhos e chororós. Naquela época, o povo via o show e ia para casa satisfeito, sem dar muita bola para a politicagem. Mas, no domingo, vi alegria, disposição, muita gente cheia de esperança, numa vontade danada de passar este país a limpo. Animei-me. Cumprimentei e abracei muitas pessoas. Muitas. Quase todo mundo que eu via, abraçava. Então, comecei a perceber que era minha geração que estava presente, que maciçamente era minha classe social que estava na rua. Senti a falta de gente que não é possuidora de um poder aquisitivo ou detentora de um padrão de vida e de consumo razoáveis. A maioria das pessoas tinha certamente mais de 35 anos e pertenciam à classe média. A pouca juventude presente era composta de meninos e meninas de até 15 anos que ainda acompanham obedientemente os pais. Raros eram os jovens de 16 a 35 anos protestando. Por que eles não foram? Alienados? Desmotivados? Com o que eles se preocupam? Onde estavam? Sentem que este país não lhes pertence? Esquisito. Não entendi. Nós, os pais, estávamos lá, em defesa de um futuro melhor para nossos filhos e netos e, eles próprios, ausentes. Parece que não estão nem aí para o destino deste país. Ligaram o “foda-se”. Uma pena! Que diferença da minha geração. Lembro que nos comícios da “Diretas Já” e do “Fora Collor” a presença majoritária era de jovens com as caras pintadas. Como disse, senti falta também do povão, dos menos favorecidos. Será que para eles tanto faz, toda política não passa de uma ladroagem, de uma pouca vergonha? Ao final, sempre são eles que pagam a conta. Agora mesmo, a incompetência e a roubalheira do governo acarretaram a crise, a recessão, o desemprego e a inflação, males que quem vai pagar e sofrer intensamente serão os mais pobres. Parece que no dia 18 haverá passeatas em defesa de Lula e Dilma em todo o país. Certamente também não veremos a presença “espontânea” do povo. Os “populares” presentes serão transportados, alimentados e remunerados pelos sindicatos, CUT e MST. Estas organizações não vão para as ruas contra a corrupção, porque são sócias muito bem remuneradas dessa putrefação e defendem desavergonhadamente o governo e os seus malfeitos. Resta-nos continuar mobilizados, em defesa do estado de direito, das instituições brasileiras e em apoio à condenação dos corruptos e safados, seja de que partido for. Pressinto que os corruptos e os corruptores da Lavajato estão percebendo que irão para cadeia, em vista das futuras delações premiadas que serão formalizadas por graúdos políticos e empresários fugindo das altas penas. Assim sendo, a próxima fase será do salve-se quem puder ou do preparo de uma imensa pizza para colocarem no forno. Os Temeres, Cunhas, Calheiros e Aécios, na tentativa de salvar os seus couros e fugir das grades, vão propor um acordão, abençoado por Lula e Dilma, para tentar frear o ministério público federal e a polícia federal. É quanto a isto que deveremos nos mobilizar de agora em diante, pois se estancarem ou melarem as atuais investigações da Lavajato e as futuras averiguações sobre os desvios do BNDES e dos Fundos de Pensão este país não vai ser passado a limpo e corre o risco de virar uma grande Venezuela. |
Por Ucho Ribeiro – 17/2/2016 15:27:06 |
REELEIÇÃO
Ano de eleição é tempo dos candidatos criarem os seus slogans políticos e dos pobres eleitores suportarem a irritante ladainha da propaganda. A maioria dos candidatos tem dificuldades para encontrar os seus slogans, porque, aparentemente, parece ser simples, mas não é. Slogan tem que ser curto, de fácil assimilação e certeiro. Tem que ficar gravado, se possível, impregnado na cabeça dos eleitores. É a alma da campanha e é a partir dele que se vende a imagem do político. Um slogan errado é um tiro no pé. Há alguns geniais, como: “Yes, we can” (Sim, nós podemos), utilizado por Barack Obama na sua campanha presidencial, ou “Brizola na cabeça!”, e há outros, desastrosos, do tipo: “Agora vai!”. A frase faz o eleitor relembrar das derrotas anteriores do candidato. Montes Claros já teve vários slogans que fizeram história: “Pisa na fulô que Simeão já ganhô”; “Pedrão, o maribondo do povo”; “Mutirão de novo para o bem do povo.” Porém, nos últimos anos, depois de aprovada a reeleição, as frases dos candidatos de situação são sem graça e sempre as mesmas: – Bom pro povo é fulano de novo. Há uma ótima história sobre o afoitamento de encontrar um slogan para a reeleição. Já estava nas vésperas da convenção partidária para o lançamento da candidatura e a indecisão era imensa. Um dos coordenadores de sua campanha, que disputava ser o puxa saco mor, estava ansioso para achar logo um slogan para começar a trabalhar e reeleger o prefeito. A vitória seria a sua garantia de mais quatro anos de baba-ovo e seu emprego garantido. O adulador, numa ida à capital, passou por uma cidade e viu estampado nos muros: “George fez – George vai fazer”. Pensou com os seus botões: “Eureka! É isso!” O nosso prefeito também fez muito e vai fazer muito mais. Não temos que inventar o que já está inventado, o slogan encaixa como uma luva em nossa campanha. Será esse mesmo. Deu meia volta no carro, retornou à sua cidade, decidido fazer uma grande surpresa ao seu admirado prefeito. Nem foi em casa, comprou as tintas nas cores partidárias, saiu à cata de todos os pintores disponíveis e passou a noite no comando do serviço de pintura dos inúmeros muros dos correligionários com o seu slogan adaptado. Foi dormir de manhãzinha, estafado, mas orgulhoso, pois tinha dado a largada na vitoriosa campanha. O prefeito iria ficar satisfeitíssimo e ele, com a bola cheia, teria possibilidade de ganhar até uma secretaria municipal. Não passou um par de horas, acordou sufocado com as duas mãos do prefeito no seu pescoço, enforcando-o e gritando: – Eu te mato, fila da puta! Cê qué mi fudê! O infeliz bajulador, na ansiedade de ajudar, não percebeu um pequeno detalhe. O apelido do admirado prefeito era “Nem”. E a cidade amanhecera toda pichada: “Nem fez – Nem vai fazer“. “Nem” perdeu a eleição, o puxa-saco perdeu o emprego e ganhou o ódio eterno do admirado prefeito. |
Por Ucho Ribeiro – 7/8/2015 16:50:38 |
AUDITORES FISCAIS DA RECEITA FEDERAL ENTREGAM OS CARGOS EM COMISSÃO EM TODO O BRASIL.
A Receita Federal do Brasil entrou no dia de hoje na maior crise interna da instituição em toda a sua história. Ao evitar a inclusão dos Auditores Fiscais da RFB (Receita Federal do Brasil) na PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 443/09, o Governo assumiu o risco de encarar o maior embate já travado contra a categoria. |
Por Ucho Ribeiro – 8/6/2015 10:25:01 |
O FURTO NA IGREJA DOS MORRINHOS
Lá pros fundos dos Morrinhos se escondia um restolho de cigano alcunhado de Turíbio Caiano, danado para roubar o que via. Embolsava tudo. Matreiro, surrupiava na maior cara lisa. Era cleptomaníaco de mão cheia. Não podia ver nada dando sopa que auferia. Roubava por doença e burrice, pois não tinha nem a quem vender. Os receptadores refugavam a compra do objeto roubado tamanha era a escâncara dos furtos. |
Por Ucho Ribeiro – 28/5/2015 10:24:51 |
TIMPIM MARITACA
Timpim Maritaca era um pinguço falastrão e imprudente. Bravateiro que só ele. Passava a semana oculto na roça, no refúgio da ressaca e no esquivo da enxada. No sábado, vinha à cidade apurar uns mil reis na feira. Com o grosso do trocado abarrotava-se da marvada cana e a ninharia guardava para esvaziar numa rapariga chinfrim. Bebia de se contorcer. Chapado, arrotava coragens intercaladas com elogios à sua montaria e às suas virtudes de cavaleiro. Num desses sábados, depois de vender as poucas dúzias de ovos e algumas galinhas que trouxera da roça, foi pra venda de Fraim, encher a lata e fanfarronar, como era seu costume. Sentou no habitual banco e, bêbado, debulhou o repetido terço de confetes para o seu cavalo e a velha xaropada de mentiras. No final da feira, depois de enfarar todos, deu de ir embora. Ao sair do buteco, defrontou-se com o seu garanhão todo pintado de amarelo. Respirou fundo, deu meia volta e entrou furioso no bar, bufando e mastigando impropérios: – Quem foi o atrevido, o insolente, que pintou o meu rosilho? Se tiver cu que se apresente. Dum canto da venda, levantou um vara pau, um cabra peito-largo, jagunço renomado, Andalécio Quatro-Presas, que caminhou decidido pra cima de Timpim, desembainhando lentamente sua famigerada peixeira e sussurrando entre os dentes: – Olha aqui seu lo-ro-tei-ro de merda, o piquira de cor de bosta que tá lá fora é o pan-ga-ré que vai te levar “ca-pa-do” pra casa, seu borreeiira. Timpim, miúdo, com voz trêmula, esquivou-se: – Peraí, meu senhor! Peraí, meu senhor! Eu só queria avisar que a primeira demão já tá seca, sequinha da silva. |
Por Ucho Ribeiro – 12/3/2015 10:36:52 |
DIA 15 DE MARÇO
Como será o protesto neste domingo em Montes Claros? À luta! Nossos filhos merecem e nossos netos certamente nos agradecerão! |
Por Ucho Ribeiro – 24/1/2015 08:58:45 |
IRINEU ESTELAR OU CONFETES CÓSMICOS
Dia desses, em atoice aguda no Rio Preto, em papo familiar, proseávamos a respeito de estrelas e de nossas insignificâncias mundanas sob a atenta escuta do jequitinhonho Irineu. Um falava sobre a vertiginosa velocidade da luz, outro sobre as volumosas águas nas caldas dos cometas, um terceiro sobre o tamanho do universo, quando Tavo, meu filho, clareou-nos a cerca da escuridão dos buracos negros. – Os buracos negros existem, teoricamente, devido as grandes quantidades de matérias ou matérias em altíssimas densidades. Eles têm a massa volumar tão intensa, que tudo o que se aproxima é engolido, sejam astros, asteroides, planetas, cometas. Até estrelas podem ser surrupiadas. O campo gravitacional é tão forte, que nada escapa. Nem mesmo a luz, que move numa velocidade absurda, pode se safar, ela também é roubada, por isso a escuridão naquela região. Irineu, esquivado, olhar canteado, aparentemente desatento, sentenciou:- Ruum… apertem o criolo, apliquem um corretivo que ele entrega o serviço. Nalgum lugar o cabra escondeu estas coisas tudo que cês tão falando aí, inclusive a fiação. Gargalhadas ressoaram até que Fred começou a demonstrar com uma laranja, as rotações e as velocidades do nosso planeta. – A Terra, no seu movimento de rotação, percorre em 24 horas sua circunferência de 40.075 km, numa velocidade de 1.670 km por hora. Mais de quatro vezes a velocidade máxima alcançada por um carro de F1. No seu movimento de translação, a Terra orbita em torno do sol a 107 mil quilômetros por hora. E ainda movimenta junto com todo o sistema solar, que gira a cerca de um milhão de quilômetros por hora em relação ao centro da galáxia. Nós estamos destramelados a milhões de km por hora, gente! – Viajão, exclamou, D. Jacy. Ao girar rápido a laranja num circulo mínimo e o braço num movimento circular maior, esclareceu: – nós somos um pião zunindo a 1.670 km/h em volta de nós mesmo e deslocando a 107 mil km. Além disso, durante o anual percurso de 365 dias, a Terra dá dois leves balangandãs, afastando um pouquinho do seu eixo, mas aproximando ligeiramente um dos seus polos ao sol, o que faz ser verão num hemisfério e, consequentemente, inverno no outro. – Pára, pára, que eu quero descer, já estou ficando tonta, disse, Kênia. Irineu, desconfiado, afastou o copo de pinga, carburou o paiozo e olhou por cima, duvidoso. Pat, então, perguntou: – Porque tudo num despenca nesta velocidade toda? – Gente, tudo parece que está parado. Apenas parece, porque as velocidades dos movimentos de rotação e translação da terra são constantes, não há aceleração ou desaceleração. É como se o planeta fosse um avião. Todos e tudo que existe estão dentro dessa nave açoitada. Do lado de fora, dá para perceber a tremenda velocidade, mas internamente no avião, tudo acontece normalmente: os passageiros estão sentados confortavelmente, uns se deslocam até o banheiro, outros lêem revistas, a aeromoça serve o café, tudo na mais perfeita ordem. Porquê? Porque todos, inclusive a aeromoça, a xícara, a garrafa térmica, o café despejado, as revistas estão deslocando numa velocidade constante, idêntica. Se desacelerar, sacolejar, bagunça tudo. – Imaginem se na nossa velocíssima viagem cósmica, o planeta Terra gaguejasse? Melhor dizendo, se desacelerasse, mesmo se fosse por um segundo? Seria o caos. Os oceanos lavariam os continentes. Desexistiríamos num triz, num piscar de olhos. Sacaram? Marquim, mais empolgado, destramelou: – Vocês sabiam que a luz do sol para chegar na Terra demora oito minutos? É como se ligasse o acendedor lá e a lâmpada aqui só acendesse 8 minutos depois. Irineu, nessa hora franziu a testa e refugou forte: Ruumm! Eu, então, fisguei-o: – Cê num acredita não, Irineu? Cê tá duvidando desta conversa? -Ô, Ucho, esta conversa docês, de avião, bule de café, pagadô no sol, terremoto, bambolê da Terra, só se for lá pros lado dos Monsclaro. Aqui, desde que nasci, a num ser um ventinho ou outro mais açoitado, tudo é do mesmo jeito, e eu garanto que pros antigos também. O sol todo dia nasce na banda de cá e morre à tardinha na banda de lá. A lua também tem o prumo dela, o seu nascer e o seu minguar costumeiro, só muda o horário. Mas cada um bebe e fuma o que quer e vê o que credita. Tomou papudo! |
Por Ucho Ribeiro – 7/1/2015 17:29:40 |
Prezada Maria Luíza Silveira Teles, Vendo sua mensagem nº 79258, lembrei-me de ter lido há muito sobre o baixo uso da morfina no Brasil. Era uma estatística de proporções disparatadas, do tipo: “enquanto nos hospitais americanos, de cada 1000 pacientes terminais, 380 fazem o uso da morfina, no Brasil, apenas 6 doentes ao final da vida são sedados para não sentirem dor`. A reportagem dizia até que na Argentina a aplicação era quinze vezes superior à brasileira: de 96 para cada 1000 doentes graves. O Brasil chegou a ser denunciado em foros internacionais por deixar pacientes sofrerem dores intensas e desnecessárias. Pelas explicações da época, a baixa utilização da morfina era devido a nossa formação cristã que considera a morte um sofrimento natural e doloroso, que todos devem passar. Um absurdo. Hoje, ao navegar pela internet, deparei no site da Anvisa (http://anvisa.gov.br/medicamentos/controlados/alerta/mundo.pdf) com a seguinte informação: “Menos de 20% dos pacientes terminais e daqueles que sofrem com o câncer ou traumatismos, no Brasil, recebem tratamento adequado para o alívio da dor, diz Elisaldo Carlini, titular de psicofarmacologia da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e um dos membros da Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes das Nações Unidas”. Grande abraço, do admirador, Ucho Ribeiro |
Por Ucho Ribeiro – 14/11/2014 23:22:57 |
BAIXADA DA SANTA CASA 4ª PARTE Uma minúscula casa guinada para o poente, ao fundo do Colégio Imaculada, abrigava um casal germânico com três filhos louros, de olhos azuis. O mais velho, John, era colega de Fred, o do meio, Henry, meu colega, e o menor, que não lembro o nome, também estudava no colégio São José. A porta, sempre trancada, só era aberta parcialmente pela mãe quando batíamos para chamar os meninos para brincar. O pai nunca aparecia, não trabalhava nem saia de casa. Na fértil imaginação infantil, achávamos que o oculto e carrancudo alemão era da Gestapo e fugitivo da guerra. Suspeitávamos que fosse parceiro do famoso médico da SS nazista, Josef Mengele, “Anjo da Morte”, responsável pelo extermínio de judeus. Chegamos a montar uma carta denúncia para a embaixada de Israel, colando cuidadosamente palavra por palavra, recortadas de revistas e jornais, porém nunca conseguimos tirar uma foto do temido e misterioso oficial ariano para anexarmos como prova. Creio que só não efetivamos a delação por causa da amizade e afeição que tínhamos pelos três meninos. Ao lado do refúgio da família alemã era o dormitório do internato do Colégio Imaculada. Quase todas as semanas rapazes faziam serenata para galantear as resguardadas internas, entre elas, as belas Marina Queiroz e Suely Oliveira. O cortejo musical se estendia à casa da frente, morada das jovens donzelas Lopes: Teresinha, Maristela e Vicentina(19). No mesmo passeio em direção a Cel. Luiz Pires, residia o solitário e elegante Pedro Santana, mestre nas cadeiras de história, inglês e na norma culta, coloquial, sem gírias. Só saia de casa arrumado e bem penteado, sempre pronto para uma recepção. As duas casas vizinhas eram da família Dias. Na primeira, vivia Dona Aldinha, com suas filhas Ariana e Ana Verena e, na outra, Dona Nenzinha, que tinha uma filha chamada Neuza. Na direção a Rua Reginaldo Ribeiro, havia a casa de Dona Idália, mãe de João Capoteiro, Ernestina, Arlinda e Neném(20). Também na irmã Beata, lado oposto, vizinho do Seu Juquita Queiroz, morava Seu Geraldo Borges do Café Diplomata, pai de uns dez filhos(21). Findando a rua, à direita, em frente a casa da família Tralalá(22), ficava a casa do Seu Píndaro e Dona Ilda(23), que não fugindo à regra, tinham uma porção de filhas, todas bonitas, e um punhado de marmanjos, dois deles notívagos e músicos, Dandão e Davi. À esquerda, era a funerária da Santa Casa, onde fabricavam variados tipos de caixões para os defuntos da cidade. Uns eram acolchoados, nos quais Paulinho, meu irmão, quando matava aula, dormia. Marão o acordava cedo para ir ao Polivalente e ele se esquivava e corria para a funerária. Lá, destampava o caixão mais fofo, deitava e puxava a tampa e o ronco. Só deixava uma frestinha para respirar. Acordava ao final da aula gazeteada. Esperava desinchar a cara e chegava para almoçar. Existia um único caixão para os indigentes, construído com o fundo falso. O pobre morto só era agasalhado até o cemitério. Depois que o caixão descia na vala comum, o fundo era aberto e o coitado despejado. O féretro era recolhido e o defunto coberto de terra. Bai, bai… Na Santa Casa, trabalhavam: Zé Azul, motorista e braço direito das Irmãs, que as acompanhava para fazer compras no mercado e outras tarefas; Pedrinho e Tampinha, mecânicos e eletricistas, responsáveis pela manutenção dos carros; Seu Liordino, um velho senhor que dirigia tanto a Veraneio das irmãs como a caminhonete fordona. Esta tinha uma carroceria de carregar defuntos para o cemitério que parecia um oratório. Um dos divertimentos era cuspir fino e pouco nos olhos abertos dos mortos recém-chegados à funerária, para ver se eles piscavam e fechavam a pálpebra do olho salivado. Tinha ainda dois outros senhores, responsáveis pelo destrinchamento dos cadáveres para a vistoria do legista Dr. Geraldo Drumond: Seu Geraldo e Seu Barbosa. Este último era um negro forte que, antes de iniciar o serviço de corte, ia ao boteco mais perto e tomava um copo até a tampa de pinga. Ao final, outro, para arrematar. Um para ter coragem, o outro para esquecer. Na lateral da Santa Casa também tinha uma fabriqueta de hóstias. Sá Joana, após cortar as redondas pastilhas de trigo, distribuía as rebarbas para a gulosa meninada. Tinha moleque que chegava entalar com as sobras que pregavam do céu da boca a garganta adentro. Na esquina do Café Diplomata, iniciava-se o beco da Coronel Spyer. Logo depois do muro da casa de Tóla, no outro passeio, moravam Seu Idevano, gerente do Automóvel Clube, e Dona Pedrelina(24), costureira de mão cheia. Nosso convívio era com os filhos Marcão (Gordo) e Nenga (Nem Galinha). Este último era o capeta em forma de gente. Uma vez, minha mãe estava encomendando uma roupa na casa de Pedrelina e viu Nenga correndo em cima do muro do quintal. Assustada, mamãe perguntou: – Ave Maria, Pê, este diabo do Nem Galinha frequenta aqui também? Não sei como você aguenta, ele falta me enlouquecer lá em casa. Colado na casa de Idevano havia o sobrado de João Caldeira, dono da madeireira que funcionava na Irmã Beata, ao fundo lateral da nossa casa. O dia inteirinho ouvíamos o barulho do vai e vem das serras cortando as imensas toras de madeiras. Era de lá que pegávamos a serragem para colocar nos gols dos campinhos de futebol. Ele tinha um filho, Roger que, salvo engano, foi para Belo Horizonte estudar dança, e uma linda filha chamada Vilma. Havia também o assisado Jackson, que o ajudava na serraria, andava sempre arrumado e só se deslocava montado numa bicicleta verde toda paramentada e limpíssima. Tinha um moderníssimo dínamo para acender os faróis e até um rádio acoplado no guidom. De dar inveja. Já quase no final do beco, situava-se a casa do Coronel João de Deus(25) e seus rebentos. Os homens, Ziba, Têra e Ada, eram companheiros de toda hora, tinham o sentido sempre voltado para as brincadeiras e para o futebol, quando não estavam no mundo encantado deles: Juramento. As meninas, Deusmira e Valmira, diferentemente, eram estudiosas e a última tornou-se promotora em Montes Claros. Na Cel. Spyer também moravam Dona Joana e seus filhos, Amarildo, Ronnie e Alexandre, amigos da rapaziada. Bem, depois de tantas e saudosas memórias, o que restou da minha baixada? Onde está o longo muro esburacado da Santa Casa? E o murinho da casa de Jessinho? Cadê os campinhos de futebol e as casas dos meus amigos com as portas escancaradas? Não vejo crianças nas ruas, nem o rio correndo vistoso e piscoso. Não ouço mais a gritaria da meninada, apenas buzinas e freadas. O cheiro de café foi substituído pela fumaça dos carros e das ambulâncias. Só na memória e de olhos fechados ouço o variado barulho dos rolamentos percorrendo as diversas texturas dos passeios das residências: zizizizi, vrum vrum vrum, tlec tlec tlec, vrup vrup vrup, ziiiiiiii, e o sonoro e contumaz tombo. Onde eu guardei as minhas bolinhas de gude, minha manivela de 16 cruzetas e o meu álbum completo de figurinhas, tão quistos? Cadê a minha tanajura mor, da bundona mais inchada, vitoriosa em todos os combates frente às dos outros meninos? E a meia dúzia de cobras de vidro que eu guardava na gaveta do meu guarda-roupa? Para aonde foi a minha coleção de selos, herdada de mamãe? Lembro-me de páginas e páginas de “Olho de Boi”, que troquei com Ernesto e Paulão por míseros centavos, por um lápis de cor ou por uma desejada borracha? Cadê a inocência de Cori, os causos do Cel. Georgino, a gentileza de Seu Juquita, a amizade de Waltinha, a fidalguia de Júlio de Melo Franco, a alegria de Tola, as palhaçadas de Tadeu, os tombos de Aníbal, o fundo musical do piano de Júnia, as brincadeiras de strak-deixa, estátua, bolso esquerdo, a raça de Têra e Ada na defesa e os dribles de Tone Lídio e Malveira no ataque? Não ouço mais a estridente corneta de Mazzaropi, nem a rouca buzina de Adão Padeiro, anunciando o seu pão alemão. Não mais flutuo por cima do rio Vieira, pendurado em cipós, nem pego mais cari em suas águas. Nunca mais nadei em seus poços ou brinquei nos esconderijos de suas margens. Hoje tudo está cimentado, asfaltado, enterrado na nossa memória. Tudo passou, foi embora, levado para longe, como as enchentes do Vieira que arrastavam madeiras, fogões, cobras, portas, vidas e sonhos. Resto-me só, desamparado, neste caos urbano, anônimo, tentando aspirar na memória, inocentemente, um pouco daquele cheirinho de café torrado, na esperança de voltar à minha infância para brincar com aquela meninada alegre e amiga, principalmente com os que se encantaram e nos deixaram saudades. Fim. NOTAS: (19) Filhas de Biô e Florinda Lopes, juntamente com Irmã Marilda, Padre João Batista, o vereador Hamilton Lopes, Geraldo, Antônio Augusto (Antoninho), Romário, Jason e Alexandre. |
Por Ucho Ribeiro – 9/11/2014 13:20:24 |
BAIXADA DA SANTA CASA
(3ª parte) A encascalhada Rua Irmã Beata era usada como corredor de bois para o matadouro Otani. Ao ouvir o toque do berrante repicado amadrinhando a boiada e ao avistar de longe a poeira em nuvem levantada, todos corriam para dentro de suas casas. Das janelas, portas e varandas, a meninada arreliava o tropel esquentado, bufante, torcendo por um estouro ou por um desatino de uma vaca mais doida, que não raro saltava a mureta de uma casa e fazia um escarcéu no jardim. Passado o tumulto, a rua ficava toda esverdeada, salpicada de estrumes, que deixavam o rastro e um cheiro de curral. Essa nem tão beata rua foi uma chocadeira de artistas. Dali saíram vários músicos e compositores. Depois da casa de Baixote morava Dona Carlota(15), mãe de uma porção de gente, inclusive de Tadeu, artista polivalente, mambembe, circense, itinerante. Rodou o país como músico, teatrólogo, hippie, artesão e o escambau. Viveu e bebeu a vida como poucos. Sempre alegre e criativo. Seu irmão, Dirceu, foi-se novo. Outra das minhas primeiras sentidas mortes. Mas a figura que habita o melhor da minha lembrança é Vicença, uma velha empregada, que passou a vida na casa de Dona Carlota. Era compacta, cheia, rosto redondo, despachada, alegre e conversada. Entendia-se bem com os adultos e dava conta da vida da meninada inteira. Sabia dos malfeitos, das brigas, dos romances e de todos os fuxicos e intrigas, mas não entregava ninguém. Amigona da garotada, sempre alertava: A casa seguinte era a de Cori Gonzaga(16), a eterna criança. Desde pequeno já participava das molecagens dos mais velhos. Não era o artífice, mas cúmplice, sempre xereta. Cedo pendeu para música e para os atrativos da noite. Adolescente, percorreu o Brasil com o Grupo Raízes. No compor músicas belíssimas procurou inspiração em muitos venenos e volta e meia calcava o pé no coentro. Uma vez, ao sair de casa à noite, deparei com Cori sentado sozinho no murinho. Triste. Outra feita, num velório na Santa Casa, Cori, que morava ao lado, apareceu para ver quem era o defunto. Manso, chegou junto ao caixão e perguntou a um dos familiares: – Ô, Nem, o compade aí morreu de quê? Casa cheia era a de Seu Juquita Queiroz(17). Fábrica de artistas e músicos. Tudo pedra noventa. Era gente que não acabava mais. Recordo do Seu Juquita sempre formal, bem vestido, educado, elegante. Cumprimentava todo mundo, levantava o chapéu para as senhoras e tinha trato até para as crianças. Canarista e amigo do meu avô Pacífico, que sempre remoía: Todo criador de canário da terra é gente boa e séria. Pode confiar. Uma vez, Seu Juquita, ao chegar em casa, deparou com um menino em cima do muro contemplando o por do sol. À tarde, sempre passava um vendedor gritando: – Olha a paçoquinha! Olha a paçoquinha! E em certos dias, frisava: “Hoje tem! Hoje tem!” Os desinformados achavam que ele anunciava que quem comprasse sua mercadoria afrodisíaca ia ter uma caliente noite. Mas para os entendidos, avisava que naquele dia ele estava abastecido com outras especiarias mais alucinantes e contemplativas. Existiam outros ambulantes vendedores de guloseimas para a molecada. Um era Mazzaropi, que de longe tocava sua corneta estridente avisando a chegada de sua deliciosa iguaria – “Olha o quebra queixo da Bahia, quem tem dinheiro compra, quem não tem espia….. Burlesca e ao mesmo tempo fúnebre era a doceira Pacífica, sempre de luto, vendendo pés de moleque, doces de leite, cocadas brancas e pretas. A dupla concorria com os vendedores de pirulitos em cones de rapadura derretida, envoltos em uma fina película de papel manteiga e encaixados nas dezenas de buraquinhos de uma tábua furadinha que ficava pendurada no pescoço do ambulante. De noitinha, apareciam pipoqueiros na Praça da Santa Casa, com os amendoins achocolatados, os cocos caramelizados, os algodões doces coloridos e os tradicionais roletes de cana caiana. Mas o suprassumo das gostosuras era a bala de puxa das Irmãs do Imaculada. Na fissura de refrigerantes, bebida rara naquela época, saíamos de casa em casa atrás de garrafas e litros para trocarmos pelo guaraná da fábrica RC, que por um tempo funcionou na Rua Irmã Beata. Dividíamos a bebida, gole a gole, sem nojo ou higiene. Lá perto tinha também uma das delícias de Montes Claros, a paçoca de Dona Teresinha Vasconcellos(18), muito apreciada pelos adultos. Doces não eram vigiados. Os adultos adoravam ver os pequenos comerem fartamente. Até incentivavam a comilança. Ninguém preocupava com obesidade e nunca vi criança fazer regime. A meninada era ativa, não ficava parada. As brincadeiras aconteciam na rua e despendiam muita energia. Íamos a pé ou de bicicleta por todo o canto da cidade. Brincávamos até o anoitecer e nossos pais desconheciam o nosso paradeiro. A patota era unida e havia regras que eram seguidas à risca, pois todos tinham o sentimento de pertença a baixada e se orgulhavam de ser da turma. Continua… NOTAS: (15) D. Carlota, mãe de Tadeu, Dirceu, da grande mestra Edméia, de Dilma (namorada de Beto Viriato), Fredo, Frido, Lindéia e Dílson. E a empregada Vicença. |
Por Ucho Ribeiro – 31/10/2014 14:19:30 |
BAIXADA DA SANTA CASA 2ª PARTE O maior desejo da garotada era ter um carrinho de rolimã. Andávamos a cidade inteira pelas oficinas mecânicas em busca de rolamento, que era a coisa mais difícil e cara do mundo. Precisávamos de quatro. Dois mais robustos para o eixo de trás, que ficava sob o banco e, outros dois, que podiam ser até menores, para o eixo da frente, que era comandado pelos nossos pés. Continua… NOTAS: |
Por Ucho Ribeiro – 27/10/2014 10:34:02 |
BAIXADA DA SANTA CASA 1ª PARTE Dia desses, bestando calado em uma demorada espera de consulta médica, fiquei abismado com o caos que se transformou o entorno da Santa Casa. Trança-trança de barulhentas ambulâncias à procura de um estacionamento e de indóceis pacientes em busca de atendimento. Aquele furdunço todo a acontecer no meu naco mais íntimo, onde vivi a minha divertida infância e adolescência… Antes, era um arrabalde de casas ocupadas por famílias empencadas de crianças. Não existia comércio, nem consultórios, nem clínicas, nenhuma prestação de serviços. Não havia mão nem contramão, pois automóveis não transitavam por ali, salvo os de uns poucos moradores. Precárias ruas sem pavimentação, cobertas de cascalho miúdo socado, terminavam naquela baixada, que tinha ao fundo o rio Vieira. A Coronel Luiz Pires, que começa na avenida Cel. Prates, só rompia três quarteirões abaixo, até pouco depois da fábrica do Café Diplomata e reduzia-se a uma ruela ramificada em trilhas que nos levavam as margens do nadável rio. A Rua Irmã Beata morria na funerária da Santa Casa, em frente à residência de Píndaro. Sua paralela, a Cel. Spyer, era um beco sem saída, nem começava direito e já esbarrava no muro lateral do Colégio Imaculada. Estes poucos logradouros e mais o mato ao redor eram o nosso gueto, o nosso umbigo, sempre envolto num perene aroma de café torrado. Raramente deparávamos com crianças que não fossem da nossa tribo. A baixada não era passagem para lugar algum, a não ser para uma pinguela que nos levava ao Curtume, onde um prático dentista, sempre chapado, ameaçava cair todo entardecer ao retornar do seu arranca-dentes. Durante as chuvas, a trilha ficava escorregadia e a meninada, empoleirada na escadinha do café, torcia pelo tombo. Queda ocorrida, com aplausos e risos, corríamos para socorrê-lo. A primeira casa da Cel. Luiz Pires era do seu Ernesto da Barroso(1), que não gastava tempo com a nossa rua. Toda manhã o seu sentido estava no quarteirão do povo, na sua papelaria, no escarafuncho dos assuntos políticos e nos fumegantes fuxicos do Zim Bolão. Abaixo, onde hoje é a Santa Casa Olhos, morávamos nós(2) – papai, mamãe, oito filhos e, durante um tempo, os nossos avós maternos. As casas da baixada não eram protegidas por muros. Tinham apenas muretas ou grades pequenas, que não tapavam as fachadas das residências. As portas viviam abertas, a meninada entrava sem bater, convocando para as brincadeiras. Andávamos em bando, conluiados, brinquedos e segredos compartilhados. Em frente da nossa casa residia Dona Gladys(3), generosa mestra do Grupo Francisco Sá, que pacientemente alfabetizou metade dos meus irmãos com suas aulas particulares. Vivia com seus filhos, três sobrinhos e sua calada mãe, Sá Luíza, sempre munida de cachimbo e muleta. À tardinha, Sá Luíza nos dava um troco para comprarmos o seu traçado na venda de “Genaro Meu Irmão”(4). Os seus filhos Tinim e Waltinha eram meus irmãos de unha e carne na infância. Eu passava o dia na casa deles. Lá criávamos preás, coelhos, tartarugas, cágados, passarinhos, fazíamos manivelas, montávamos pipas, araras e guardávamos todos os nossos tesouros em seus quartos: bolas, canivetes, bilboquês, gibis, piãos, bolinhas de gude e álbuns de figurinhas. Mônica, minha irmã, também adorava estar ali, mas seu interesse era outro – ler e reler as melosas fotonovelas das revistas Capricho e Contigo, que nossos pais proibiam terminantemente. Ao fundo da casa de Dona Gladys havia outro café, o Primor, do popular Tuca Amorim. Ao final do dia, escalávamos um robusto pé de goiaba encostado no muro divisório para nos deliciarmos vendo, pelas frestas do telhado, as funcionárias da fábrica tomarem banho para retirar o suor e a fuligem do café. A meninada, empoleirada, toda de pintinho duro, nem piava. De olhos arregalados, maravilhava-se com aquele mulherio pelado, risonho, ensaboando-se. Puro cinema. Marquim, meu irmão, que só conhecia xibiu de criança, ficou decepcionado ao subir na goiabeira pela primeira vez: – Ô Ucho, eu só vi os peitos delas, não deu pra ver o resto, não. Todas puseram umas buchas entre as pernas. Na esquina do Café Primor, em frente, estava a casa de seu Edson, que era dono de uma Rural saia e blusa, branca alaranjada, e da lanchonete localizada no passeio da Praça Dr. Carlos. Ele e Dona Teresa tinham uma ninhada endiabrada de filhos: Panga, Baixote, Edí, Ninha e Lê. Patota malinamente entrosada com todos os meninos da rua. No outro passeio da esquina da Irmã Beata, residia o famoso Cel. Georgino(5). Era dos poucos adultos, ou o único, que sentava com a meninada para prosear. Criança era apartada de gente grande. Mundos diferentes, mas como vivíamos sentados no murinho da sua casa, maquinando para aprontar alguma, de quando em vez o Coronel aparecia e dava uma canja com seus causos. Certa vez, ele chegou a esta mureta, onde amontoava-se a meninada miúda e alguns graúdos e começou a contar uns causos de onça. Cada um mais arrepiante do que o outro. Numa das estórias, depois de narrar com detalhes a enorme e raivosa onça pintada e relatar minuciosamente como a bichona faminta se encorpava pra cima dele, Ruy do Bongô, troviscado, com os olhos arregalados, o interrompeu abruptamente: – Coronel, Coronel, mas esta onça devia tá muito doida pra querer enfrentar o senhor, não? Georgino não conteve o siso, nem o riso, gargalhou. Era neste baixo muro que a molecada se juntava, desde as primeiras horas da manhã até a noite, para bolar as brincadeiras: brasil e espanha, mãe da rua, queimada, paredão, acadabaspará. Criávamos e praticávamos jogos com simples paus e pedras. O nosso “cabas pará”, chamado em Belo Horizonte de “bentealtas”, era jogado no passeio dos Melo Francos. Lá tinha uma tampa de ferro da Caemc que servia de um dos apoios para o jogo. As duplas se formavam e aguardavam a vez definida no par ou impar. Horas se passavam naquele divertido vai-e-vem, na tentativa de derrubar a casinha piramidal feita de três pauzinhos de madeira pregados num quadradinho de couro. Nada como aparar no ar uma bola defendida ou arremessada e gritar: Vitória! Quando surgia um álbum novo de figurinhas, o bafo tomava conta dos passeios. Chamava-se bafo porque era o vento provocado pelas mãos durante a batida no monte de figurinhas que as fazia virar. A garotada formava roda para a disputa. Cada menino colocava uma quantidade combinada de figurinhas no bolo e, pela ordem, depois de arrumá-las, batia com a mão em concha ou aberta no monte. As que viravam ao avesso eram recolhidas pelo garoto que tinha acabado de bater. Uns mais traquinos curvavam um pouco as figurinhas ou passavam um leve cuspe na mão para virá-las. Volta e meia uma trapaça era descoberta e os sopapos comiam soltos. Raiva e choros amansados, a molecagem voltava ao jogo. Ninguém chamava papai ou mamãe. A parada era resolvida ali mesmo, naquele foro infantil. Certas brincadeiras eram definidas pelas estações. Em agosto, com os fortes ventos, no azul céu surgiam as coloridas pipas e araras. A meninada, com os sentidos nos ares, dedicava o dia à manufatura de seus artefatos voadores. Cola, papel e os carretéis de linha 40 eram comprados na loja de Tamiro, no beco Cônego Marcos, e as taliscas eram retiradas dos raros pés de bambus existentes na baixada. O sonho da criançada era montar uma arara biteluda, multicolorida, rabuda ou sureca, e ter uma manivela de 16 cruzetas nas mãos para recolher ligeiro e esticadinha a linha. Final de setembro, com a chegada das chuvas e a maciez dos terrenos, iniciava-se a temporada dos jogos de finca e bolinha de gude. O chão das ruas ficava todo riscado pelas fincas e biloiado pela variedade de bolinhas existentes à época: gataiadas, leitosas, sorteiras, bolofofos. Só se ouvia a criançada gritar: “Gute, please, todos!”, “Bololô na minha!”, “Mão quieta!”, “Rondas!”, “Quero tudo e não dou nada”. A despedida das águas era o tempo de sairmos à cata de tanajuras. A meninada toda, com uma garrafa litro debaixo do braço, se espalhava pelas ruas colhendo as formigonas bundudas para trocar com Toni Pinguim por um picolé. O nordestino adorava comê-las fritas como pipoca, mas tínhamos a leve desconfiança de que ele usava o creme das bundas delas para fazer os tão procurados picolés cremosos. Continua… NOTAS: (1) Ernesto e D. Dilma, pais de Ana Amélia, Ernesto, Paulão, Dilsinho, Denise. |
Por Ucho Ribeiro – 29/9/2014 11:45:05 |
É um disparate! O nosso poeta maldito, benquisto por muitos, cantor, compositor e escritor Elthomar Santoro, autor da música “Rapariga do Bonfim“, morreu nesta manhã no Hospital Haroldo Tourinho, por complicações cardíacas. Elthomar tinha 56 anos e foi um dos maiores compositores musicais que Montes Claros já teve. Compôs centenas de canções e várias delas são e serão cantadas para sempre pelos nossos jovens. “Elthomar, você foi embora O corpo será velado a partir das 13h no Centro Cultural Hermes de Paula. Estarei lá! |
Por Ucho Ribeiro – 15/9/2014 10:17:20 |
ADELÍNIO MEIA COLHER
No finalzinho dos anos setenta, coube a mim tomar conta da fazenda Ipueira, lá nos cafundós da Jaíba, beira do velho Chico e ermo do sertão. Ia pra lá desmatar, fazer carvão, plantar capim e criar boi. Triste sina. Quem sou eu, hoje, para derrubar um pau, uma árvore. Sou incapaz de quebrar um galho ou fazer uma poda e há 35 anos eu derrubava alqueires a correntão puxado por tratores D8. Juntava aquela imensa moçoroca de aroeiras, angicos, barrigudas, ramas e cipós e tacava fogo sem dó nem consciência. Um inferno que ardia por dias e noites. Era o que se fazia, desajuizadamente, com autorização do IEF e do Ibama. O orgulho era arrotar: – Na minha fazenda não tem um pau, uma sombra. Tudo liso. Puro capim. Hoje, macambúzio, vejo as fazendas encapoeiradas e os rios secando um a um. Envergonho-me. Mãos à palmatória. Bem, nessa época, como eu passava a maior parte dos dias naquela tosca e rústica empreitada, precisava de pelo menos um canto pra repousar a noite. Resolvi, então, fazer uma casa, mesmo sem luz elétrica e confortos. Porém, lá não havia pedreiro, nem mestre de obra, as choupanas eram feitas de adobe e taquara. O ribeirinho do São Francisco era afastado do mundo. Televisão não existia, rádios, uns poucos, mesmo assim, desligados, pois pilhas eram caras e não tinham onde comprar. Materialmente, o povo sobrevivia de peixe e abóbora, desconhecia qualquer tipo de consumo e tinha medo de automóvel. A vila Florentina, que ficava ao lado da fazenda, era uma Macondo, que vivia em volta do seu umbigo. Existiam para eles mesmos e desconheciam o resto do planeta. Embora isolados, eram curiosos e respeitosos com a pouca e rara gente da cidade que aparecia. Na longa busca por pedreiro em Montes Claros me restou Adelínio, que se apresentava dizendo: – Muito prazer, Adelínio Figueira, seu servo. Era metido a besta que só ele. Imagine um pedreiro que fazia as unhas aos sábados. Usava cabelinho glostora, empastado, fiapo de bigode aparado a navalha, perfumado a Lancaster. Quando o sol esquentava, o sobaco suava e o azedo do Rastro avisava. Sonhava ir ao Chacrinha cantar “Parece que eu sabia que hoje era o dia de tudo terminar”. Se achava um galã. Sempre de pente no bolso, a toda hora o puxava e passava nos seus rebeldes cabelos. Era caspa para todo lado. Pior era quando ele batia o pente nos cantos dos móveis para o farelo branco cair. Sem contar que o gaiato andava com cotonetes e palitos de dentes na carteira de bolso. Quando o levei para Jaíba, ao terminar as refeições, ele abria a carteira, tirava pausadamente o seu usual palito, cutucava os seus cariados dentes e ao final dava a inevitável chupadinha: chichi, chichi… Em seguida, retirava um dos seus guardados cotonetes, introduzia no ouvido, o rodopiava pra lá e pra cá e retirava suas ceras amareladas. Higiene explícita e completa. Os barranqueiros, que não tinham nem escova de dente, assistiam aquele ritual como coisa de outro mundo e depois comentavam: – Viu que homem educado. Para a obra andar e eu me livrar logo do Adelínio, arranjei dois sujeitos bons de serviço para serem seus serventes e platéia, Zé e Antõe. A dupla logo-logo pegou o ritmo do serviço, num faltava tijolo, nem massa para o pedreiro contador de potoca. – Já fiz minha inscrição no programa de Chacrinha. Uma pena que vocês não vão poder assistir. Só estou precisando de uma “partner” para o meu show, será que não tem nenhuma mocinha por aqui que eu possa levar aos estúdios da Globo? Antõe, sem entender, perguntou: – Cumé qui é, seu Adelino? – Adelí-ni-o, meu filho, Adelí-ni-o! Nome de artista: Adelínio Figueira. – Tá bom, mas o que o senhor quer mesmo? Perguntou, de novo, Antõe. O pedreiro, carente, há dias socado naquele fim de mundo, doido pra arranjar um rabo de saia, de olho na assanhada filha mais velha de Sá Rita, jogou verde: – Será que a Delcira num topa viajar comigo pra Montes Claros e de lá nós irmos apresentar um show no Rio de Janeiro? – Topa! Ela tá até engraçada com o senhor, mas o senhor num rompe, num toma as rédea. Adelínio endoidou. Acabou o serviço, tomou um banho, perfumou-se, penteou o rebelde por duas vezes e foi estalando pegar a janta na casa de Sá Rita. O sentido inteirinho na sua filha. Acabado o jantar, finalizadas suas explícitas higienes, puxou conversa com a serelepe Delcira e a chamou para caminhar e ver a clara e redonda lua. Papo vai, papo vem, promessas de viagens e presentes, tomou coragem e pediu a cabrocha pra namorar. De pronto, Delcira topou e eles já voltaram de mãos dadas. A semana rodou, naquele ritual – trabalho, jantar, higiene e namoro. No escuro, Adelínio já beijava, roçava e mastigava a Delcira toda. Ficava pra morrer de tesão, pedia, implorava e nada. A filha de Sá Rita podia estar sopitando, mas sempre dizia: – Não! O coitado do pedreiro passava a noite pensando na namorada. Amanhecia bambo e ia insone para o trabalho. Lá encontrava com a dupla Zé e Antõe, que já sabendo do seu sofrimento, perguntava: – Comeu? Adelínio, arrasado, sempre respondia: – Quase. Até que numa manhã, Antõe perdeu a paciência: – Que quase, homi, comeu ou não comeu? Adelínio, sofrido, duvidou: – É, acho que ela não dá não. – Não dá? Ontem mesmo, depois que você deixou ela em casa, o Zé chamou ela pra debaixo do pé de Joá e conferiu. Num foi, Zé? – Ó, se foi, já peguei a bichinha quente e moiada. Ela chegou a assubiá. Ao ouvir aquilo, Adelínio perdeu a paciência, jogou a colher de pedreiro pro lado, desceu do andaime e saiu à procura da sua namorada Delcira. Encontrou-a na beira do rio, batendo roupa. Sem discrição nenhuma, na frente das outras lavadeiras, Adelínio destramelou: – Delcira, eu estou te namorando sério esse tempo todo, prometendo-te levar pra Montes Claros e mais sei lá o quê, e você num dá pra mim, mas dá pra qualquer um? Delcira, estranhando aquele ataque todo, respondeu calmamente: – Mas, Bem, cê só pede. Eu digo “não” e cê num passa a rasteira, num me dirruba. |
Por Ucho Ribeiro – 8/9/2014 12:06:35 |
HÁU! Cansados de pescar no velho Chico, os compadres Enio Pacífico, Murilo Maciel e Pedrim da Antarctica programaram uma pescaria no Araguaia. (Histórica foto acima). Despediram das patroas, das suas pragas e dos seus bicos, beijaram os bacuris e partiram para o meio da selva. O papo durante a viagem foi sobre a expectativa do que eles iriam encontrar naquela selvageria toda. – Me disseram que lá tem índio igualzinho aos que estavam aqui quando descobriram o Brasil. Pedrinho, apimentado, sonhou alto: – Será que lá num tem também umas indiazinhas no pelo pra gente amansar? A viagem durou uns dois dias, até se abrigarem numa encantadora esquina de areia branca do Araguaia. Desceram os barcos, as tralhas, do caminhão, armaram as barracas e montaram jeitosamente a cozinha na sombra de uma rósea sapucaia centenária. Instalaram os jiraus pras panelas, estantes para os fartos mantimentos e forquilhas pra secar os sonhados peixes. Tudo maravilha. Turma alegre, escolhida a dedo, estoque renovado de causos e piadas, bóia de primeira, gole frouxo sem regração e o riso solto, destramelado. Pescaria melhor? Não se lembravam. Já tinham esquecido de Monsclaro, das patroas e do trabalho. A rotina era acordar aos deus-dará, tomar um café, sem pressa, reforçado com ovo, farofa e banana frita. Entrar no barco, quando desse vontade, pescar o dia inteirim e só voltar para o acampamento à tarde para tomar mais umas e saborear o criativo rango do cozinheiro Druvalino. Pança cheia, paia certa até o começo da noite, quando uns iam jogar truco e outros mais fissurados voltavam para o rio à procura da piraíba desmedida. Lá pelo quinto dia, no final tarde, depois da bóia e do descanso, Enio e uns companheiros foram banhar e lavar as panelas no rio. Distraídos com tanta beleza e vastidão, demoraram a perceber as três canoas que despontaram na curva do rio. Murilo, treiteiro, desconfiou: – Será que é índio? Nisso, duas das canoas estocaram e a maior, com um indião desmesurado, foi deslizando nàgua em direção à dupla tremelique. O bitelo do índio veio remando levemente em direção dos dois até que freiou sua canoa com um reverso movimento no seu remo. A canoa fez uma pequena meia lua e parou perpendicular a eles, estampando aquele imenso e carrancudo selvagem, como um totem. Sem saber o que dizer, pois diálogo com índio só havia visto em filme de Gary Cooper, largou as panelas, levantou o braço, abriu a palma da mão direita para cima e arriscou: – Háu! O sisudo índio apenas respondeu o cumprimento: – Háu! Enio, atrapalhado, perdido como as suas panelas rio abaixo, perguntou com voz trêmula: – Chefe, onde homem branco pegar peixe? O empavido selvagem, pausou e respondeu: – No ri-o! Enio, cercado de borbulhas, tomou coragem e engatilhou outra pergunta com o vozear pausado: – Mim, ca-ra pá-li-da, que-rer pe-gar pe-i-xe gran-de. Co-mo pe-gar pe-i-xe gran-de? O índio, então, destramelou: – Depende do seu equipamento. Vocês estão com carretilha ou molinete? Aqui pra pegar piraíba grande só com carretilha DAM ou Abu Garcia. A vara tem que ser Fleming ou Sumax de 120 libras, a linha Raiglon 0,90 mm e o anzol Mustad 12/0. Mas tudo isto só serve pra quem tem braço pra fazer força e pelo visto tá faltando homem aqui. Tomou, distraído? PS. Acredite quem quiser – nesta pescaria eles pegaram uma Piraíba de mais de 200 kg. |
Por Ucho Ribeiro – 25/8/2014 10:17:40 |
MACHO MAN
No verão de 94, Marão aporrinhou o seu compadre João Valle Maurício a largar Monsclaro e viajar pelo mundo. |
Por Ucho Ribeiro – 11/8/2014 11:17:20 |
Um Didal de Irineu Para uns, um ninguém. Para outros, um truão, um mentecapto. Isolado, disjunto, iletrado, isto ele é. Como mesmo diz: – não faço nem o “ó”. É mudo e mouco para este mundo apressado, máquino. Desconhece nossa vida elétrica, internética, televisiva. Ignora leis, política, papéis, carimbos, documentos. Não sabe sua idade, mas, se entrega: – Na grande cheia de setenta e nove eu era rapazim, fiquei apartado na Boleira, do outro lado do rio por luas, comendo só quiabo da lapa e samambaia cozida em enchu de galinha. Mas no começo de nossa convivência, como eu não tinha casa no Alecrim, deixava meus trecos – bicicleta, bóias, coletes, caiaque – com ele, que os guardava zelosamente em um dos seus cômodos. Quando chegava, era o primeiro lugar que eu passava, para pegar alguma das tralhas, filar uma boa prosa e encomendar um frango com ora-pro-nóbis, para comer no finalzinho do dia. Sua casa era de chão batido, o piso esfregado com o esmeraldino esterco bovino e as paredes clareadas com tabatinga. Seu porco Filomeno tinha trânsito livre, porém usava um espetado brinco de arame no nariz, para impedi-lo de futucar e esburacar o chão. As galinhas dormiam empoleiradas pelos cantos, a do choco se aninhava confortavelmente num velho forno de um inativo fogão a gás. As rapaduras apuradas com abelhas petrificadas ficavam dependuradas acima do fogão de lenha. Perguntado como ele aproveitava as rapaduras com tantas abelhas grudadas, respondeu de pronto: – No café, elas fica no coador. |
Por Ucho Ribeiro – 8/7/2014 11:55:18 |
SESSENTA E NOVE – Mário, acorde! Tem gente mexendo na porta! Marão perdeu os seus direitos políticos em julho de 1969. Estávamos no sítio Tira-Teima, quando ele ouviu pelo rádio o seu nome na lista dos cassados pelo Conselho de Segurança Nacional. Marquim, inocente, saiu alegremente gritando: – Ô, os minino, falaram o nome de Papai no rádio! |
Por Ucho Ribeiro – 30/6/2014 10:50:14 |
SESSENTA E QUATRO
Éramos uma ninhada, escadinha de sete crianças de 4 a 11 anos. Mamãe tinha 34 anos e Papai cinco a mais. Ela vivia por conta da gente e ele por conta de tudo quanto havia no planeta: política, reformas, eleições, medicina, construções, futebol, cinemas, fazenda, frigorífico, pedreira, curtume, imprensa, etecetera e tal. |
Por Ucho Ribeiro – 24/6/2014 12:00:46 |
O FIDUMA
Carlos Alberto era funcionário da Caemc, antiga Companhia de Águas e Esgotos de Montes Claros. Exemplar servidor. Assíduo e rigoroso nos seus afazeres. Era o responsável pela carteira das contas dos consumidores. Implacável na cobrança e impiedoso com os inadimplentes. |
Por Ucho Ribeiro – 15/6/2014 08:47:24 |
ZÉ MUTAMBA E GUARANÁ
De volta das Cabeceiras, Zé Mutamba veio bem acompanhado. Arrumara um companheiro, unha e carne, bom de prosa, de gole, chegado num joguinho e mais ainda num rabo de saia. Era o notório Guaraná. 1º 7133 09 Cobra Guaraná ganhou. A dupla empapuçou. |
Por Ucho Ribeiro – 9/6/2014 11:28:25 |
BOA VIAGEM!
Quem me contou foi Artuzim, lá de Pedra Preta. |
Por Ucho Ribeiro – 2/6/2014 11:09:27 |
CAGAÇO
Zé Maria era um frouxo, um cagão. Morria de medo de defunto, lobisomem, alma penada e tudo quanto é. Não dormia sozinho e fugia de escuridão. Tinha até o apelido de Borreira. |
Por Ucho Ribeiro – 30/5/2014 15:06:00 |
O TIC-TAC DA COPA.
A Copa está chegando e o povo está frio, cabreiro. |
Por Ucho Ribeiro – 23/1/2014 15:55:30 |
O INFERNO DOS PRESÍDIOS. Estou cansado deste lero-lero sobre as reformas dos presídios. Sempre a mesma estória, logo após um motim a imprensa cai de pau e mostra o descalabro das masmorras brasileiras. Passado o escândalo o assunto sai de cena até surgir outra rebelião. As prisões para encarcerar o povo brasileiro sempre foram medonhas, superlotadas – o próprio inferno. Porém, existe prisão diferente para os bacanas, para os colarinhos brancos, para os políticos. Uma lei especial concede um cárcere diferenciado para os corruptos letrados, graduados, do porte dos protagonistas do mensalão. Duas leis, duas medidas, duas cadeias. O único jeito de passar o rodo nisso é, primeiro, ter uma lei só valendo pra todo mundo. Segundo, é garantir que todos, indistintamente, que mijarem fora do pinico irão preso e, terceiro, deixar claro que todo mundo que for preso vai ser encarcerado na mesma cadeia. Zé Dirceu com Escadinha; Zé Genoíno com um Pé de Chinelo. Se os políticos corruptos, os ladrões abastados e os membros podres do judiciário fossem presos, e fossem enjaulados nas mesmas celas dos ladrões de galinhas e traficantes, esses privilegiados almofadinhas iriam dar seus pulos e arrumariam rapidinho dinheiro para reformar todo o sistema prisional brasileiro. Presídios “a la primeiro mundo”. Mas, enquanto houver dois Brasis, o dos que mandam e fazem leis, mas não vão presos, e o dos que obedecem e vão para cadeia se pisarem na bola, a enfadonha ladainha sobre a calamidade do sistema presidiário permanecerá. A verdade é que as poderosas e privilegiadas aves de rapina não querem mudar as nossas vergonhosas leis, com medo de serem encarcerados nos aterrorizantes presídios brasileiros. |
Por Ucho Ribeiro – 4/1/2014 14:53:03 |
UM RAYU EM MINHA VIDA.
Quando menino, Christoff era espevitado, expresso, curioso. Tinha todos os brinquedos, alguns inimagináveis, irreais até em nossos sonhos. Rayu Ribeiro Christoff, a inteligência e delicadeza mais bruta e amorosa que conheci, se foi. Escafedeu-se. Está a plainar sobre nós. Soberano, com toda a sua fleuma. Sinto-me desamparado, sem poita, uma lágrima só, num oceano enxuto e árido. |
Por Ucho Ribeiro – 22/11/2013 11:37:13 |
O mau cheiro insuportável empesta há muito os bairros Santos Reis, Jardim Brasil, Renascença, Edgar Pereira, Alice Maia. Infecta inclusive o Todos Santos II, passa pela Nova Morada e vai até o Eldorado. Catinga das mais fedorentas. E isto já tem anos e mais anos. Fedentina generalizada. A Secretaria do Meio Ambiente sempre se silenciou. Mouca e muda. A Copasa por sua vez, ignora o esperneio e a gritaria da população. Continua calada, omissa, e não se defende quando a sua Estação de Tratamento de Esgoto é acusada de emitir o putrefato cheiro. Uns culpam a ETE, outros acusam as descargas residuais das fábricas do distrito industrial, emitidas na calada da noite ou nos finais de semana, quando não há fiscalização ambiental. Se é que existe? A Secretaria de Meio Ambiente deveria se manifestar de forma clara, objetiva e informar categoricamente de onde vem o fedor. Declarar se já aplicou alguma multa ou se já estabeleceu prazo para findar o mau cheiro. Quais foram as efetivas medidas adotadas pela prefeitura para sanear este terrível fedor? |
Por Ucho Ribeiro – 14/11/2013 11:47:45 |
Bom senso futebol clube. Quarta feira histórica. Ontem, antes do Cruzeiro sagrar-se tri-campeão brasileiro, ocorreu a maior e mais representativa manifestação de protesto contra a atual situação do futebol brasileiro. A manifestação dos jogadores das 14 equipes que foram a campo, nesta quarta-feira, foi pacífica, necessária e legítima. Como os protestos de junho no país, as faixas pedindo respostas à CBF para o movimento “Bom Senso no Futebol” foram contundentes e verdadeiras. O árbitro de São Paulo e Flamengo, ao ver os atletas de braços cruzados, ameaçou punir os jogadores com cartão amarelo. Cena das mais tristes, que lembrou a ditadura. Os jogadores inteligentemente, para evitar os cartões, bateram bola amigavelmente por quase um minuto ao ser dado o início da partida. Imagem que vai percorrer e chocar o mundo. Retratará escancaradamente a nossa arcaica cartolagem e a deficiente estrutura do futebol nacional. Infelizmente, a Rede Globo continua a ignorar tais protestos e a mobilização dos jogadores dos campeonatos brasileiros das séries A, B e C. Silencia-se, por que sabe que o modelo atual das competições favorece suas transmissões e a audiência de suas novelas. A luta apenas começou. Muita água vai rolar até a Copa do Mundo. Veremos! |
Por Ucho Ribeiro – 6/11/2013 15:16:02 |
Ao reclamar da péssima qualidade da minha internet fui informado que a situação vai melhorar, pois a Anatel ampliou o limite mínimo de velocidade de banda larga. Pela nova regra da Anatel os provedores de internet de banda larga terão de entregar “no mínimo” 30% da velocidade pela qual nos cobram e, na média mensal, 70%. Uma pouca vergonha! Antes o limite mínimo era 20%. Pouca vergonha e meia! Para o ano que vem, em novembro, esses números passarão para um mínimo de 40% e uma média de 60%. O absurdo continuará! Nesse compasso lá por volta de 2020 estaremos empatando: os provedores vão nos entregar tudo pelo que pagamos estes anos todos. Mais uma aberração legitimada pelo governo. As prestadoras dos serviços deveriam devolver com multa e correção a diferença do que venderam e não entregaram. |
Por Ucho Ribeiro – 25/9/2013 10:50:46 |
DESPEDIDA
Ênio Pacífico abriu o Quintal para juntar os amigos. Era um adulo só. Pra cada um tinha um trato especial, um bajulo, um tira-gosto, um carinho e uma franciscana atenção para ouvir causos, lamentos e anedotas, mesmo que velhas. A turma chegava a partir das seis horas da tarde, mas alguns tinham ali como escritório, surgiam logo depois do almoço e atravessavam a tarde debaixo das mangueiras a bebericar e a filar a prosa boa do proprietário. Dárcio Cabeludo era um deles. Instalava-se ao lado da mesa de trabalho de Ênio e de lá mesmo despachava os serviços do seu escritório de contabilidade. Cervejinha mocada, assuntos aparentemente sérios e bicadas escondidas até às cinco e meia. Daí em diante, a gelada passava escancaradamente para cima da mesa cada vez mais aninhada de amigos. |
Por Ucho Ribeiro – 18/9/2013 11:34:05 |
Vejam esta bela história de Darcy, irmão de Marão, contada por sua grande amiga, Vera Brant, uma das pioneiras de Brasília Histórias do Darcy Vera Brant Numa reunião de trabalho, almoçávamos no apartamento do Darcy: Paulo Renato, Cristovam e eu. |
Por Ucho Ribeiro – 11/9/2013 10:06:50 |
O TEMPO URGE
De todos os protestos de junho e mesmo das contestações recentes do Sete de Setembro não surgiu nenhuma nova liderança nacional ou mesmo regional. |
Por Ucho Ribeiro – 8/8/2013 10:46:17 |
GUERRA SEM FIM
O melhor da pescaria são os preparativos. A pré-pescaria. É um mês de salvo conduto. Toda semana tem uma reunião para providenciar as tralhas. Álibi garantido para a patroa. Obs: Turma de pescadores: Seu Ênio, Murilo e Ronaldo Maciel, Pedrinho da Antártica, Edmilson Lessa, Wilsinho Curió, Lóis, Aramis, Marquim Ribeiro, José Aluizio e Lucas Pinto, Vidal, Fernando Etiene, Cel. Zeder, Edgar e Ernane Pereira, Marcos Pitangui, Gê Novais, Getulio Fraga. Chefes de cozinha: Durva, Gedeon e Ildeu. |
Por Ucho Ribeiro – 29/7/2013 15:04:18 |
TUTUCA
Tutuca chegou em Francisco Dumont no sábado, antes do Domingo de Ramos. Pretendia passar toda a Semana Santa na casa do seu amigo Camilo, o único médico da cidade. Mas deu com os burros nàgua, o doutor havia viajado para um congresso e esticado o feriado numa praia baiana. |
Por Ucho Ribeiro – 15/7/2013 09:02:16 |
MINGUTA
Minguta era o porteiro da Cooperativa. Tomava conta do portão de entrada dos carros de leite que vinham matinalmente das fazendas. |
Por Ucho Ribeiro – 9/7/2013 10:11:00 |
É PARA LÁ QUE EU VOU…
Sossego eu conheci no Rio Preto. Atoice atroz. Papo pro ar. Sem ter pra onde ir nem o que fazer. Bestar pelas ruas, apreciar casas, fachadas, visitar igrejas, jiboiar em águas nítidas, aquentar sol, subir ladeiras, descer o rio, desvendar becos, conversar com um, beber com outro. Admirar a paciente ferragem de uma cavalgadura. Contemplar o zelo e o gosto do seleiro ao tecer uma cabeçada. Dar ouvidos ao trino trinar dos passarinhos. Dobrar esquinas por borboletas. Seguir cachorro sem rumo. Quietar horas na venda, num banco, vendo a arte do vender e do não vender. Assuntar prosa no buteco do Girino, a beira do rio. |
Por Ucho Ribeiro – 25/6/2013 13:10:44 |
DEODORINA
Quando menino morria de medo de assombrações, mula sem cabeça, mãe d’água, curupira, lobisomem. Tinha até medo de virar um deles, já que sou descendente do famigerado Bicho da Carneira lá de Pedra Azul. |
Por Ucho Ribeiro – 18/6/2013 11:11:38 |
O OVO DA SERPENTE
O povo está nas ruas protestando. |
Por Ucho Ribeiro – 11/6/2013 11:07:15 |
CIPRIANO Cipriano já estava gasto. Era só pigarro. O enfisema tomando conta. Um paieiro atrás do outro, fora o rapé cafungado o dia inteiro. Morava na roça. Passou a vida entretido nos currais e em catiras. Gostava de fazenda, bois, vacas. E de mulas, éguas, cavalos. Muito mais de mulher. Só via gente nas rodas de folia ou quando se desentocava da sede da fazenda atrás de um rabo de saia. Sabedor de sua valentia, do seu estopim curto, raramente saia da fazenda. Evitava tumulto, confusão. Se bebia, qualquer faísca o atiçava, ficava feroz, sanhudo, tomava partido e entregava a boiada para entrar no rolo. Na cidade ia pouco. Pouquíssimo. Uma vez ou outra, ano sim, outro não. Numa dessas vezes, por pretexto de velório, veio a Montes Claros, numa Semana Santa. Era para ser vapt vupt, velar o corpo, enterrar o dito cujo e… pé na estrada de volta. Mas imprevistos ocorreram. Perdeu o carro do leite e ficou impedido de viajar, teve que pousar, a contragosto, na casa dos parentes, na Praça Coronel Ribeiro. A sobrinha, fazendo sala, vendo da varanda uma fila imensa, perguntou: – Tio, o Senhor gosta de cinema? Cipriano, desconfiado, tirou uma baforada e respondeu: – Gosto! D´casca um pra mim! A sobrinha, rindo com discrição, explicou: – Né de comer não, Tio! Tá vendo esta fila imensa aí fora é pra assistir ao filme que está passando no cinema. O Senhor deve ir. Aposto que vai gostar. Insistiu tanto que levou o velho até a bilheteria para comprar os ingressos. Já estava na hora da sessão. Entraram. Como era Semana Santa, a fita em cartaz era “Paixão e Vida de Cristo”. O mesmo filme era passado todo ano e o povo o via como uma obrigação religiosa. Terminada a sessão, Cipriano saiu exultante, maravilhado. Passou a noite falando do que tinha visto, do acontecido. Demorou dormir, estava exaltado. Na manhã seguinte, domingo, acordou cedo, tomou café e ficou ciscando, inquieto. Esperava a sessão de cinema matutina. Logo que abriu a bilheteria às 10 horas, foi o primeiro a comprar o ingresso. Entrou, sentou e ficou à espera do filme. Dez e meia em ponto a fita começou. Passados uns 20 minutos, olha o Cipriano saindo do cinema de volta para casa dos parentes. Nervoso, resmungando. Puto. A sobrinha, sem entender, perguntou: – Que foi, Tio, não gostou de rever o filme? Cipriano, então, disparou: Sabe aquele cabeludinho, aquele barbudinho de ontem, que levou uma sova danada? Que sofreu uma covardia horrorosa? Que bateram, espancaram e pregaram uma coroa de espinho em sua cabeça, sabe? Pois é, cê num acredita, tava ele lá hoje de novo todo siligristido, montado no mesmo jegue, entrando novamente naquela cidadezinha, rindo e balançando os raminhos. Ora, eu fui lá foi pra ver a desforra, pra assistir ele vingar todas as maldades e covardias de ontem. Achei que seus companheiros iam sangrar o bofe de uma meia dúzia para dar uma lição naquela corja. Mas não, tava lá o cabeludim de novo, feliz da vida, balançando raminho, com cara de atoleimado. Aposto que vai tomar outra surra daquela pra deixar de ser besta! |
Por Ucho Ribeiro – 22/5/2013 10:09:32 |
Creio que esta foto foi tirada em um dos casarões da baixada, lá no fundo da Matriz. Onde exatamente? Quando foi batida a chapa? O time da noite estava quase completo: Dico Zuba, Mário Ribeiro, Dácio Cabeludo, Diu Colares, …., Ruy Braga, Afrânio Temponi, João Galo, …., …., Zé Priquitim e Lúcio Bemquerer. Faltam 3, quem são eles? Quem está vivo, vivíssimo, além de Lucio Bemquerer? |
Por Ucho Ribeiro – 9/4/2013 10:02:27 |
Adão e Eva
Quando menino eu não entendia algumas coisas. Uma delas era Adão e Eva. |
Por Ucho Ribeiro – 1/4/2013 11:51:44 |
Minha Dr. Santos 2ª parte – Da D. Pedro II a Padre Augusto O miolo do mundo era a Dr. Santos. A cidade acontecia naqueles poucos quarteirões que ligavam as praças Coronel Ribeiro a Dr. Carlos. Tudo: negócios, empréstimos, fuxicos, catiras, elogios e desacatos, sucedia e arrematava naquele corredor de lojas, casas, consultórios, bares, pensões, botecos e mercado. Havia até dois jornais que pulavam miúdo para registrar todo o burburinho que efervescia naquela veia urbana e em suas adjacências. Meus amigos, triste é passar pelo centro de Montes Claros e perceber que a nossa Rua Dr. Santos existe apenas nas nossas efêmeras e finadas memórias. Ao cabo, minha gratidão às assistentes e essenciais memórias de André Antunes, Bartola, Carlão Meira, Haroldo Tourinho, Fabio Marçal, Luiza Magna, José Gonçalves de Oliveira, Nilo Pinto, Robson de Quadros Figueiredo e Tadeu Leite. (1) Pai de Waldizinho, Fernando, Flaucy, Flávio, Fábio, Gera, Cláudio e Áurea. |
Por Ucho Ribeiro – 6/3/2013 10:25:20 |
Depois de amanhã é o Dia Internacional das Mulheres – Dia apropriado para desvelar o machismo montesclarense. Até hoje, entra câmara, sai câmara, elegem-se novos vereadores e nenhum propõe a mudança dos nomes de dois logradouros de Montes Claros: Viúva Coronel Francisco Ribeiro e Viúva Paculdino. Uma rua no centro, ao lado do Banco do Brasil e uma avenida no Jaraguá II. Trata-se de homenagens a duas dignas e honradas senhoras. A viúva do Coronel Francisco Ribeiro chamava-se Dona Luísa Magalhães Ribeiro e foi a principal doadora e fundadora do Orfanato Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. A viúva Paculdino chamava-se Dona Esther Alkmim Ferreira Paculdino e pertencia a uma das mais ilustres famílias de Bocaíuva. Entretanto, a perpetuação dos atuais nomes estampa a nossa abominável e vergonhosa macheza. Reitero o pedido para que algum vereador ou vereadora apresente um projeto na câmara para a substituição dos nomes dos maridos pelos destas virtuosas e merecedoras mulheres. A propósito, dois lindos nomes: Luísa e Esther. |
Por Ucho Ribeiro – 18/2/2013 11:07:25 |
Dias desses, conversando com um senhor sobre coisas da vida, fiquei encantado com tantas vivências e conhecimentos. Insensato, acabei perguntando: – Quantos anos o senhor tem? De pronto, respondeu: – Uns dez anos! – Dez anos? Arguí. Ele, então, retrucou: – Sim dez. Eu já tive 65, muito bem vividos, curtidos, findados. Agora, provavelmente só terei mais dez. Dez com saúde, tesão e disposição para vida. Pretendo vivê-los intensamente. O resto, o restolho, se vier, se eu tiver, será arrastado, suportável. Um perrengue. Tosse e dor. E eu, quantos anos tenho? |
Por Ucho Ribeiro – 6/2/2013 09:42:15 |
Minha Dr. Santos
1ª Parte – Da D. João Pimenta a D. Pedro II. Nas brumas dos meus mais profundos relembramentos, recordo difusamente de uma bolinha percorrendo um pequeno aclive de um alpendre. Minha visão esconsa se delineava pela posição da minha cara postada no arejado e liso chão. Com o arco do meu braço, eu lançava uma bolinha de gude pelo cimento queimado e a assistia percorrer uma ligeira curva até retornar mansa à outra mão. O movimento repetido, silencioso, ecoa-me, até hoje, quietude e segurança. Posso até confundi-lo com um sonho longínquo, mas sempre foi a minha primeira lembrança. Em seguida, uma casa da Tia de Ernani Meira, que depois foi de Carlos Leite e Felicidade Patrocínio. Parelho, havia um domicílio que foi antiga habitação de Moreira César e depois de Luis de Paula. Posteriormente, escritório da FUNM e, mais recentemente, depósito/escritório do mesmo Luis. Grudado era o ponto para onde o Diário saltara. |
Por Ucho Ribeiro – 23/1/2013 11:01:45 |
Enchente
Há uns 20 ou mais anos, em noite de janeiro, uma tromba-dàgua inundou o bairro Todos os Santos. Disseram, à época, que o reservatório do Pai João havia rompido, não aguentara o peso da chuva. A água, ladeira abaixo, atravessou os Bois até pousar no miolo do bairro, formado pelo baixio das ruas dos santos Mateus, Marcos, Antônio, João e Paulo, perpendiculares aos logradouros das santas Bernadete, Lúcia, Maria e Luzia. Ficou tudo encharcado. Uma enorme lagoa urbana. |
Por Ucho Ribeiro – 4/1/2013 16:24:41 |
João Galo, João Alegria. João todo amigo. João que recebia, que adulava, que ria. Que não deixava ninguém de fora. Que dava pão e abrigo. Quintaleiro de toda hora. Que juntava e reunia. Gargalhava alto e se divertia. Generoso, dadivoso com todos ao seu redor. Escapuliu como um passarim a procura do seu bando. Lá em cima, o contentamento está demais. Há fila para abraçá-lo e paciência eterna para ouvir os novos causos da terrinha. João, meu padrinho. |
Por Ucho Ribeiro – 3/1/2013 09:33:44 |
EDUARDO LIMA Goya sempre foi o pioneiro. O atirado. O aventurado. O primeiro a pegar a barca e conclamar todos a fugir da mesmice. Nos sessenta, Colégio São José, era o furacão, a alegria, o catalizador da meninada para o novo, para as mudanças que aconteciam no mundo. Tomava frente do grêmio escolar, mobilizava os alunos, nos chacoalhava com ideias, sonhos e fantasias. Era o organizador e participante-mor das quadrilhas juninas, dos jograis, e peças de teatro. Nunca foi plateia nem coadjuvante, sempre o protagonista. Eterno enamorado da vida e das meninas. Paixão transbordante que encantava e maravilhava todos. Garoto foi para a ZYD7 e comandou um programa de variedades, divertido, múltiplo, com um papo novo, udigrudi, tropicálico. A garotada ficava ligada, atenta aos toques e apliques. Organizava festivais e gincanas. Agitava a cidade. Montes Claros ficou pequena, mudou-se para BH e lá irradiou sua alegria e entusiasmo pelas alterosas. Casou-se, teve filhos, candidatou-se a deputado, casou de novo, teve mais filhos, elegeu para vereador, continuou casando e tendo filhos, foi secretário de esportes, escreveu livros, namorou seguidamente e apaixonadamente procriou mais e mais, sem nunca perder a ternura, a alegria e a disposição para a vida. Por onde andou encantou até se encantar de vez. Ficamos nós a ter saudades… Muita, muita mesmo! Obrigado, Goiabão! Valeu Mermão! Já dizia Rosa: “Todos estão loucos, neste mundo? Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total.” |
Por Ucho Ribeiro – 24/12/2012 08:50:38 |
TREMOR E TEMOR
O terremoto nos tornou conhecidos. Agora o Brasil inteiro, quiçá o mundo, sabe que aqui nos cafundós de Montes Claros a terra treme cada dia mais forte. Volta e meia aparecemos no Jornal Nacional: o povo correndo com medo, varandas rachando, desabando e os conterrâneos, os turistas e os viajantes fugindo dos prédios, dormindo nas calçadas e dentro dos Uns se borram, outros fanfarreiam. Todos tem uma história pra contar. Só quem não se manifesta de forma clara e precisa são as autoridades constituídas e os institutos sismológicos nacionais. Até agora nenhum pesquisador, um renomado cientista, um geólogo especialista ou um observatório idôneo, embasado em fatos e pesquisas circunspectas, deu uma explicação cristalina, pontual e exata. Resta-nos o achismo, o chute no escuro, o palpite infeliz. Desde os primeiros tremores, as explicações são as mais diversas: uns dizem que os abalos sísmicos são devido a uma falha geológica situada entre o Bairro Vila Atlântica e a Serra do Mel; outros acusam as detonações realizadas pelas pedreiras; vários afiançam que são acomodações naturais de camadas no subsolo a centenas de metros de profundidade; uns poucos, mais esotéricos, defendem as válvulas de ressonância do globo terrestre; e alguns técnicos, com papo de especialistas escolados, culpam a super exploração das águas subterrâneas numa zona cárstica, bem como a pressão hidrodinâmica com aumento da lixiviação na litosfera e outras pressões. Os reais convocados a dar explicações são unânimes em apenas duas assertivas: os tremores irão continuar e teremos que nos acostumar com eles. Ou seja: se virem! Nós, montesclarences, leigos e mortais, ficamos ao deus-dará a espera do próximo tremor. Na torcida que seja brando e passageiro. Por outro lado, o que estarão pensando os grandes empresários, potenciais investidores? Será que arriscarão seu money numa terra sujeita a abalos sísmicos e a apagões? Imagine se algum grupo farmacêutico, químico, petroquímico, laboratorial, terá coragem de montar suas instalações em Montes Claros. Um tremor mais forte pode desbancar prateleiras, causar um apagão e dar prejuízos monumentais. Pode até mesmo atrasar pesquisas que vinham sendo desenvolvidas há anos. E uma nova barragem, uma nova usina na região, será que o empreendedor, público ou privado, não terá que elaborar sofisticadas pesquisas levando em consideração os abalos? Qual serão o preço e a complexidade destas pesquisas? Quanto elas impactarão financeiramente as obras? Imaginem uma rachadura na Usina Biodiesel de Montes Claros, localizada pertinho ou bem em cima da falha geológica existente nas proximidades do bairro Santos Reis e da Vila Atlântica. Presentemente, depois da assiduidade dos tremores, a Petrobrás montaria ou ampliaria a sua usina naquele local? E a Novo Nordisk, Vallé, Nestlé, com os seus laboratórios e centros de estudos estão tranquilas em ampliar seus parques industriais e de pesquisas em Montes Claros? Decidido investir pesado no norte de Minas com base na demanda do mercado e nas facilidades logísticas da região, um empresário escolheria de estalo a nossa terrinha ou sondaria Janaúba, Bocaiuva, Pirapora para montar o seu empreendimento. Depois de ver as cenas que já passaram na televisão, um pai estaria seguro em aconselhar ou mandar seu filho estudar em Montes Claros? A boca pequena fala-se que a Alpargatas atrasou quatro meses o seu projeto para rever as possíveis consequências dos tremores no seu processo de produção. Quais são as preocupações e providências da nova unidade da Case New Holland? É sabido que há filas nas imobiliárias para devolver, trocar e vender apartamentos. A procura agora é por casa, por imóveis de um só piso. A Prefeitura, as entidades de classes, a Associação Comercial e Industrial, a Câmara de Diretores Lojistas, têm que providenciar urgentemente um estudo técnico, qualificado, fundamentado, idôneo para mostrar e tranquilizar os atuais e pretensos investidores em Montes Claros. Cada vez que a terra treme há um enxotamento de novos investimentos. Cada tremor é um temor. Acordai Montes Claros para que possamos dormir em paz! |
Por Ucho Ribeiro – 10/12/2012 15:23:35 |
Carta em que Darcy Ribeiro, então senador pelo Rio, pede ao amigo Oscar Niemeyer um projeto seu para M. Claros, então governada por seu irmão Mário Ribeiro. O propósito era localizá-lo no Parque Municipal. Rio de Janeiro, 9 de setembro de 1991 Oscar, meu irmão, Sai de Montes Claros há 50 anos, mas meu coração ficou lá pulsando. Quando sonho com eu menino a cidadezinha me ressurge, com o seu frescor de ilha de arvoredo no meio do carrascal Norte-mineiro. As saudades que tenho são saudades de mim, lá, naqueles idos. Montes Claros tinha então umas 3 mil almas e corpos que comiam, todos juntos, nos três dias das festas de agosto. Todos também cantavam lãnguidas serenatas nas noites de lua cheia, no alto dos morrinhos, que era um morrinho à toa, mas de onde se via a cidadeza toda, ali, aos pés, e a imensidão do céu prateado. Hoje, minha cidade se chama MOC e tem quase 300 mil habitantes, coitada. Da última vez que fui lá, fechava os olhos para ver minha Montes Claros, que, agora, só existe no meu peito. Obrigado, Oscar. Meu abraço |
Por Ucho Ribeiro – 7/12/2012 09:40:19 |
DESDÉM
Três projetos arquitetônicos elaborados e doados a Montes Claros pelo genial Oscar Niemeyer foram absurdamente ignorados. Nenhum foi executado. Enquanto várias cidades do mundo lutaram por um projeto de Niemeyer, Montes Claros não levou adiante nenhum dos três que ganhou de presente: o Museu de História Natural, o Centro Integrado de Educação e Formação de Professores e a Capela Ecumênica da Unimontes. O primeiro, o projeto do Museu, foi um pedido de Simeão Ribeiro, que na ocasião era prefeito da cidade. A obra seria na forma de um caracol e contaria a história do Arraial das Formigas, desde a fundação até os dias atuais. Os esboços e as plantas provavelmente estão nos arquivos e acervos da família de Simeão. Já o segundo, o do Centro de Educação, surgiu em 1992, devido a uma súplica de Paulo Ribeiro ao seu tio Darcy para que fizesse gestões ao Niemeyer. A obra arquitetônica seria implantada ao lado do Parque Municipal e destinada à formação e qualificação de professores. Na época, foi orçada em 2 milhões de dólares e contaria com um centro cultural e de convenções, bem como biblioteca, videoteca, multimídias, concha acústica, cinema e teatro. A secretaria de planejamento da prefeitura deve ter cópia. Por fim, o projeto da capela no campus da Unimontes foi um presente e uma homenagem póstuma de Niemeyer a seu amigo Darcy Ribeiro, em fevereiro de 1997. A Unimontes tem/tinha tudo documentado. Recentemente, em 2009, no começo da administração do atual prefeito, Niemeyer foi procurado para realizar e doar outro novo projeto para Montes Claros, mas parece que o grande arquiteto já estava cansado de tanto desdém. Montes Claros lhe deve gratidão. Montes Claros, por sua insensatez, deveria estar de luto oficial por Niemeyer. Que os alunos e professores de arquitetura de nossas faculdades fucem e ressuscitem estes preciosos arquivos em homenagem ao grande mestre Niemeyer. Será que ainda há tempo de repararmos tamanha ingratidão? |
Por Ucho Ribeiro – 14/11/2012 11:40:28 |
QUITES
Manhã abrasadora, irrespirável. Umidade desértica. “Monsclaro”, recortada no calor, fritava-se há dias. Éramos uma população de calangos quarando. O povo, sem lugar, trançava pelas ruas a procura de uma sombra, de alguma brisa inexistente. Amontoava-se debaixo de árvores, marquises. Um oásis era o prédio da Receita Federal. Ar condicionado no toco. Funcionários calados, frios no trato, entretidos nos seus serviços. Os contribuintes, embora intimidados com a atmosfera tributária, se sentiam aliviados do calor naquele gélido ambiente e nem se impacientavam com a morosa e arrastada fila. Ruim era retornar ao tormento das ruas. Era época de entrega da declaração do imposto territorial rural – ITR. A colega, competente e burocrática, colheu o número da propriedade, digitou no computador, a tela se abriu e surgiram centenas de códigos, letras e números. Ela virou o monitor para a melhor visão do velhinho e explicou: Meu senhor, é isso mesmo, o VTN da sua propriedade rural é elevado, consequentemente a alíquota alcançou um patamar superior. A tributação está correta. E calangou a cabeça como se o atendimento houvesse terminado, já à espera do contribuinte seguinte. O senhor, coitado, sem entender a língua daquela mulher, repetiu: Ô Dona, eu quero é baixar o meu Incra, pra eu poder pagar. Antes que a minha colega voltasse à carga, a interrompi: Pode deixar, eu o atendo. Passados alguns dias, finalzinho do mês, corre-corre doido, filas imensas, colegas de férias, fui convocado para o plantão fiscal vespertino, onde somos consultados, questionados, espremidos, para dar conta e explicar minúcias da copiosa legislação tributária. Cheguei cedo, pois sabia que a tarde seria longa e cansativa. Sempre que levantava a cabeça, na esperança de ver a fila diminuída, enxergava um senhor no fundo da sala. Quieto, calmo, sem pressa. Parecia que estava aguardando alguém. Percebi que todos passavam na sua frente e ele, impassível, com o chapéu no colo, cedia sua vez, com a aparente tranquilidade daqueles que vivem mansamente. No cabo do dia, fila findada, encerrado o expediente, dirigi-me ao senhor: Posso ajudá-lo? Não precisava esperar tanto para falar comigo. Moço, o senhor é muito ocupado. Eu não queria atrapalhar o seu serviço e nossa conversa tinha que ser reservada. Agora tá na hora d’eu ajudar o senhor. Cê não tem raiva de alguém, não? Algum fidumaégua já desrespeitou o senhor, sua senhora ou algum docês? Sem entender, arguí: Por que o senhor está perguntando isso? Atemorizado, eu disse: Não, que é isso, pelo amor de Deus. Eu não tenho nenhuma desavença não, esquece isso. O velhinho voltou a sorrir com um sorriso miúdo e arrematou: então tamos quites, né? Olhou no fundo dos meus olhos, baixou ligeiramente a cabeça, homologando nossa conversa, virou-se, e saiu em passo manso, desobrigado. |
Por Ucho Ribeiro – 30/10/2012 20:49:34 |
Eleições 2012
O burburinho se foi, ufa! |
Por Ucho Ribeiro – 3/9/2012 11:14:35 |
Qual será o destino do seu voto?
No dia 7 de outubro haverá eleição. Iremos às urnas, mas a maioria não sabe em quem vai votar e muito menos quem irá eleger para vereador. Vai votar em sicrano e elegerá beltrano. |
Por Ucho Ribeiro – 7/5/2012 17:10:42 |
Dia da Caça
Sábado, à noitinha, eu saí de casa para ir a um casamento. Meio sem vontade, arrastado pela obrigação social. Ao me deslocar para a igreja, já atrasado, parei mal estacionado na porta de um bar para comprar uma garrafinha de água mineral. Buteco lotado, mesas completas e o balcão cheio de homens sozinhos, desamparados, a mirar o fundo do copo. |
Por Ucho Ribeiro – 23/4/2012 10:42:47 |
Plico
Diabo, o Cujo, a Besta, Demo, Satanás, Capeta, o Cabrobó, Capiroto, Rincha-Mãe, o Muito-Beiços, o Rasga-em-Baixo, Faca-fria, o Fancho-Bode, o Cão, o Azinhavre, Aquele, Belzebu, o Arrenegado, o Bode-Preto, o Tinhoso, o Sujo, o Que-Diga, o Que-Era, O Que-É. Desde menino, estes eram os personagens que povoavam e marionetavam a cabeça de Plico. |
Por Ucho Ribeiro – 21/3/2012 10:20:42 |
TERESINA
No início da década de oitenta fui convidado por Haroldo Tourinho Filho para trabalhar em Brasília, no Ministério da Educação. A Merenda Escolar passava por uma enorme mudança. O novo presidente do órgão, Dr. Teixeira, entusiasmado, queria abolir os alimentos industrializados, as misturas lácteas achocolatadas, ou melhor, decidiu substituí-los por arroz, feijão, verduras e carne. Resolveu dar uma refeição decente, de gente, às crianças. |
Por Ucho Ribeiro – 8/12/2011 12:12:20 |
Ao tomar conhecimento da Lei de Acesso a Informações Públicas, Lei nº 12.527, sancionada pela presidente Dilma Rousseff, no último dia 18 de novembro, entrei em contato com o Arquivo Nacional do Ministério da Justiça, a fim de saber quais eram as informações que os órgãos de inteligência (SNI, Polícia Federal, Dops) tinham do meu pai, Mário Ribeiro da Silveira. Afinal, ele havia sido preso na ditadura e teve os direitos políticos suspensos, nos termos do AI-5, em 1969. Para minha admiração, quatro dias após a minha consulta, a Coordenadora-Geral do Arquivo Nacional no Distrito Federal enviou-me correspondência com os “resumos” dos documentos existentes no Acervo do SNI, nos quais meu pai é citado. Estou atualmente a selecionar o material para requerer as cópias dos dossiês existentes nos conjuntos documentais do regime militar que fazem referência a Mario Ribeiro da Silveira. Surpresa maior foi receber um telefonema do nosso alcaide, informando ter tido acesso a arquivos do SNI, outrora confidenciais, que registravam as atividades dos membros do Comitê Brasileiro pela Anistia/Montes Claros/MG. Relatou-me que nos documentos há referências a vários montesclarences, inclusive a Marão. Gentilmente encaminhou à minha família cópia dos registros que torno público no site www.monteclaros.com
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Por Ucho Ribeiro – 15/8/2011 09:35:22 |
ASTÚCIA
Fatos recentes revelaram o surgimento de uma nova aliança política em Montes Claros. O prefeito e o deputado Arlen Santiago evidenciaram que fizeram um acordo político visando a eleição municipal de 2012. Afinal, secretarias e altos cargos foram repassados e ocupados pelos partidários do deputado petebista. |
Por Ucho Ribeiro – 18/7/2011 13:04:18 |
Urucubaca
Ucho Ribeiro O sonho da família era ir à praia, conhecer o tão falado mar de água salgada e as inquietas ondas. Ano após ano, desde as núpcias, a desejada viagem foi sempre adiada por falta de dinheiro, por compromissos e imprevistos. Mas agora não, as férias iam acontecer na praia. Uma semana de papo pro ar, na brisa do mar. |
Por Ucho Ribeiro – 11/7/2011 09:36:12 |
MULHER DAMA
Ucho Ribeiro Nandinho só queria saber de bola. Já acordava catando as figurinhas da copa para na escola trocar e jogar bafo. No recreio, batia uma bolinha no pátio e comentava com os colegas os jogos que ouvira no rádio. Era um ufa para fazer o dever de casa, pois o sentido estava todo na pelada, no campinho de terra, ali pertinho. Só caia na real quando a cozinheira Joana berrava: “Nando, tá na hora da janta!”. |
Por Ucho Ribeiro – 4/7/2011 09:21:54 |
TRÉGUA
O Coronel andava tranquilo, desarmado, sem desassossegos, sem acreditar que chegara enfim o tempo de paz. Já estava cansado de não ter medo, de ser forte, empacar. A trégua firmada na Páscoa, continuava de pé, os limites das terras demarcados, as desavenças reparadas, o vizinho até convidou ele e a patroa para o São João. Disse inclusive que a Casa Grande estava de portas abertas. |
Por Ucho Ribeiro – 27/6/2011 15:39:41 |
Serra do Bento Soares
Spix e Martius, naturistas alemães, em viagem pelo Brasil (*) a procura de espécies de nossa flora e fauna, chegaram em Formigas (antiga Montes Claros) exatamente no dia 12 de julho de 1818. (*) SPIX E MARTIUS; Viagem Pelo Brasil; Editora Itatiaia; São Paulo; Editora da Universidade de São Paulo,1981; paginas 79 e 80. |
Por Ucho Ribeiro – 20/6/2011 08:21:33 |
Fogo Morto
Ucho Ribeiro Seu Argemiro dos Anjos, fazendeiro, erado, família criada, vivia viuvo e triste. Sem a patroa, ficou macambúzio, perdeu o cacoete para a vida. Não tinha onde ir, acuou. Não era destro para modernidades. Ficava ali na varanda da fazenda, jururu, fumando e cuspindo. O único amigo, o vaqueiro Isidoro, como um cão fiel, permanecia ao lado, preocupado. Mais não tinham o que conversar. Esgotaram o assunto há muito. Restaram olhares, gestos econômicos, monossílabos. Todos inteligíveis. O levantar das sobrancelhas era entendido, traduzido num átimo pelo parceiro. |
Por Ucho Ribeiro – 13/6/2011 15:35:16 |
Viagem com Marão
“Vambora! Vambora! Tá ficando de noite, gente!” |
Por Ucho Ribeiro – 5/6/2011 11:09:15 |
Senhor, escutai a nossa prece.
Ucho Ribeiro Todo sábado, tínhamos que confessar os mesmos pecados. Antes da confissão, Fred, o mais velho, distribuía os pecadilhos. Dizia: – Marquim, cê fica com “desobedeci mamãe e briguei com meus irmãozinhos”; eu, com “falei coisas feias e pensei bobagens”; e Ucho com “magoei meus coleguinhas e fiz indecência.” Aí, eu chiava: – Cruz credo, de novo não, Fred, sacanagem! Não vou ficar novamente com as indecências! |
Por Ucho Ribeiro – 31/5/2011 14:55:34 |
Sobre o óbvio
Nenhuma grande novidade acontecerá na próxima eleição municipal de Montes Claros. |
Por Ucho Ribeiro – 23/5/2011 11:20:03 |
AULA DE DICÇÃO
Éramos oito filhos barulhentos. Cada um mais estridente que o outro. Se um de nós quisesse dar alguma opinião tinha que elevar a voz, senão ninguém escutava, pois todos falavam ao mesmo tempo. Quem não estava acostumado, ao chegar lá em casa, achava que era briga. Eu tinha o apelido de Hermínia, nome da lavadeira, que falava igual à uma taquara rachada. A exceção era Marquim, famoso Zé do Grilo, que não era de muita conversa. Por muito, entrava mudo e saia calado. Gostava mesmo era de ir para o sítio Tira-Teima, ficar com vovô Pacífico à caça de passarinhos, pescar e cuidar dos bichos de estimação. |